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100 ANOS DE BIBI FERREIRA


Transcrevo abaixo súmula do prefácio que fiz para o livro de Jalusa Barcellos, “BIBI FERREIRA, A SAGA DE UMA DIVA”.


Uma necessidade a que o Brasil aspirava por décadas realizou-se em minutos.


A “necessidade” era a biografia substancial da lenda Bibi Ferreira, a mais completa atriz deste país ao longo dos seus mais de 90 anos de vida. O “realizar-se em minutos”, a autora já deixou claro, mas eu faço questão de sublinhar mais uma vez. Porque Carlos Alberto Serpa, ao nos receber em seu gabinete da Cesgranrio, e ao ouvir o que nos trazia ali, o apoio solicitado por Jalusa Barcellos para finalmente produzir-se uma biografia de Bibi Ferreira, foi cortante – “Para Bibi, feita por você, amiga íntima dela, além de autora da biografia do Procópio? Além de vir aqui trazida por este meu velho amigo? Fechado! Mãos a obra, porque a mais completa expressão das artes neste país de memória tão escassa quanto injusta merece a melhor biografia dentre todas já feitas até aqui”.


Embora dispondo de tempo exíguo, acompanhei, aqui, acolá, pela estima de décadas à autora, e pela devoção desde menino à biografada, o minucioso trabalho de elaboração deste livro.

Jalusa se entregou com furor e paixão ao trabalho. Mergulhou em todos os arquivos disponíveis. Ouviu meio mundo – a classe inteira ansiava por testemunhar vivências pessoais ao cruzar com a Diva. Levantou segredos. Pôs de pé personagens exumados por Bibi dentro e fora dos palcos, atores de carne e osso, além dos personagens criados por dramaturgos e que passara a ser incorporações suas.


Acabou por compor, é o que deduzo ao terminar de ler esses capítulos tão intensos, uma sentida declaração de amor à nossa extraordinária pequena grande mulher. Aliás, sobre a banalidade desse lugar comum, só o cito porque me faz evocar uma das maiores alegrias de minha vida.


Como sempre foi meu hábito desde adolescente, jamais deixei de comparecer a qualquer espetáculo com Bibi em cena. Certa vez, ela fazia curta temporada em espaço pouquíssimo usual imaginado pela perspicácia de Montenegro e Haman. No último dia de Bibi naquele local, um domingo, era meu aniversário. Não hesitei um segundo em abandonar uma festeta para mim que rolava desde às 5 da tarde e corri ao show no Shopping. A cantora Carmélia Alves me acompanhava. Ao sentarmos, Carmélia quis porque quis cumprimentar Bibi antes do espetáculo, alegando ter que voltar às pressas ao aniversário para cantar os parabéns.


Cinco minutos depois, Bibi entra em cena, radiosa, em grande noite de vivacidade, roupas e adereços. Pede aos músicos que não ataquem o arranjo de abertura para seu primeiro número. Soleniza-se, põe-se no centro do palco e ternamente diz: “Quero que vocês ouçam com atenção a razão que me faz sair do roteiro. E me acompanhem em uníssono na cantiguinha que entoarei a seguir. Logo explico: acabo de receber uma homenagem que me sensibilizou muitíssimo nesta noite. Sentadinho ali na primeira fila está amigo muito querido, acompanhado pela Carmélia Alves, a Rainha do Baião. Pois bem, ele quase sempre é o primeiro a aquecer meu coração ao adentrar o camarim a cada espetáculo meu, ano a ano.

Hoje é seu aniversário. Abandonou seus convidados, sequer apagou as velas dos seus quase sessentinha. Este Cravo que guardo na lapela do meu coração também gravou a última entrevista com meu pai, no seu leito de morte há alguns anos. E ainda acaba de, a meu pedido, me assessorar em pequenos segredos de andamento dos dois sambas de Noel Rosa que cantarei pela primeira vez daqui há pouco. Que as luzes da plateia se apaguem e que adentre ao palco o bolo com velas. E começou a entoar, a plenos pulmões, o Parabéns Pra Você. Lívido e quase em lágrimas, fiquei grudado na cadeira. A emoção só foi quebrada quando Bibi, impositiva, ordenou – “Sobe ao palco para soprar essas velas. Tantas que não posso apaga-las. Você sabe melhor que ninguém que tenho que preservar meu fôlego para tantas músicas.”

Subi ao palco um tanto trôpego. Acabei por tropeçar no último degrau e a quase queda me projetou a seus pés. Ainda semi-ajoelhado, pedi o microfone ao contrarregra e balbuciei – “Amada Bibi, estou aos pés da mais reluzente estrela do Brasil para lhe dizer, apenas em superlativos propositais, que você me ofereceu o melhor aniversário que pude ter em vida já alongada. E daqui, quase deitado no seu palco, posso comprovar a magia com que todos se referem a você ao chama-la de a mais alta pequena mulher do Brasil.


Acudiu-me agora mesmo antiga conversa que mantivemos em almoço com Paulo Autran no apartamento do Morro da Viúva. Falava-se da possibilidade de ambos montarem a obra prima de Virginia Wolf, “Orlando, a Mulher Imortal”, personagem de muitas vivências ao longo de séculos, experimentando muitas vidas, parceiros, sentimentos e até mudança de gênero. Orlando na verdade poderia ser uma paráfrase da intensidade de uma atriz em transfiguração constante no palco como Bibi. Estava sempre morrendo (ao terminar uma peça) e vivendo (ao estrear outra). Vivia na pluralidade, roçando a imortalidade. Gravitando ora no espaço, ora na terra. E ao se despedir depois de viver 400 anos incorporando dezenas de diversidades, a Mulher Imortal pode bradar um solene grito de liberdade – “finalmente estou livre”.

Leiam a biografia afetiva que Jalusa Barcellos põe agora a lume com o misto de robustos conhecimentos colhidos ao longo da amizade e trabalhos comuns mantidos por ambas ao longo de décadas.


Ao finalzinho da súmula deste prefácio, reflitam comigo o quanto injustos e desatentos são os que deveriam cuidar com mais zelo da memória da cidade do Rio. Que até hoje silenciam pecaminosamente ao não impor o nome da virtuosa Bibi Ferreira a uma escola, ou uma avenida, ou uma rua. Um bequinho, ou uma pracinha que seja. Embora eu deva acrescentar que essa possibilidade de homenagem pública pouco acrescente aos reluzentes fazeres artísticos da estrela. Esses sim um foguete incandescente a cruzar céus e memórias da ribalta e do país ao longo de um século.


Ricardo Cravo Albin