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A barbárie de cada dia


Sem uma bagagem jornalística, Selva Almada buscou aproximar-se, propositadamente,  do estilo conhecido como “new jornalism”, consagrado por Truman Capote. Depois de imprimir uma forma literária às entrevistas que fazia para a revista The New Yorker,  Capote quis distanciar-se do ambiente sofisticado que frequentava e sobre o qual escrevia, acompanhando o julgamento e a execução de dois homens condenados à morte pelo assassinato de uma família, no interior do Kansas. Dali sai A Sangue Frio (Companhia das Letras, R$ 69,90),  um impressionante relato com meticulosa pesquisa que apresenta objetivamente os responsáveis pela.  

Como Capote, Selva Almada sai em busca dos conhecidos e dos parentes para traçar a biografia dessas mulheres, cujas mortes assombraram a adolescência da escritora. Em 1984, o corpo de Maria Luísa Quevedo, de 15 anos, encontrado num terreno baldio, tinha marcas de estrangulamento e estupro. Em 1986, Andrea Danne, de 19 anos, foi assassinada com uma punhalada no coração. Em 1988, Sarita Mundín, de 20 anos, desapareceu, depois de se encontrar com o amante, um homem casado. As três moravam em povoados do interior da Argentina e eram, como Selva Almada, de classe média baixa.

Traçando paralelos entre sua vida e a das moças mortas, Selva conduz o leitor para o universo das vítimas de feminicídio, do qual ela e outras amigas escaparam. Quando passou para a universidade, a escritora mudou-se  para a capital da província, distante 200 quilômetros de sua cidadezinha, e costumava pegar carona, sempre que queria visitar a família, nos fins de semana. Cautelosa, só entrava em carros de desconhecidos acompanhada por uma ou duas colegas, esquivando-se do constante e constrangedor assédio de muitos motoristas.

Ao apontar as semelhanças e os riscos enfrentados por mulheres apenas por serem jovens e alvo das atenções masculinas, Selva Almada denuncia a misoginia de uma América Latina que tem diversos países entre os campeões de feminicídio no Ocidente. A violência contra mulheres é um traço cultural comum nesses países, onde o “mau” comportamento da vítima justifica os abusos sofridos.  Argumento semelhante ao de outros grupos culturais que praticam mutilações genitais em meninas ou que negam direitos civis às mulheres, em países africanos e asiáticos. A maioria dos agressores priva da intimidade das vítimas, como Selva relata no epílogo, ao abordar a tentativa de estupro de uma tia por um primo, que acabou surrado pelo avô e jamais voltou a se aproximar da família.  Doloroso e cruel, Garotas mortas  se pauta na esperança do declínio da barbárie que muitos preferem ignorar.