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A infância de uma leitora


Foi nessa infância cuja graça só eu experimentei que ouvi  falar, pela primeira vez, de Gabriel García Marquez. Nunca havia percebido adultos tão entusiasmados com uma temática ficcional como minha mãe e a amiga Lícia Vargas, cujas conversas, a cada encontro quinzenal, invariavelmente eram sobre o trecho que uma ou outra estava lendo  de Cem Anos de Solidão. Extasiadas, elas discutiam as tramoias envolvendo Aurelianos Buendia e Úrsulas, a quem se referiam como se fossem gente  da família. E do lugar mágico, Macondo, onde choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias.

Eu conhecia tanto as histórias dos Buendia que custei a me animar a ler o livro. E quando li, foi de enfiada, numa noite que só acabou às 4 da manhã. Estava enfeitiçada pelo realismo mágico. Antes, só via García Marques como um escritor bom de títulos, mestre em criar sonoridade. Provavelmente, quando jornalista, foi bom “mancheteiro”, daqueles que sabiam montar uma chamada irresistível para atrair o público. Ninguém escreve ao coronel, A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, Me alugo para sonhar, O amor nos tempos do cólera e meu favorito, Crônica de uma morte anunciada, não só resumem contos ou romances, mas enredava leitores por sua cadência poética.

Faz 50 anos que Cem anos de solidão foi lançado em livro na Argentina, com a primeira edição de 8 mil cópias esgotada em quinze dias. García Marquez demorou apenas um ano e meio para escrever e burilar as 400 páginas da saga dos Buendia. Macondo já havia sido cenário de outras de suas histórias, mas foi Cem anos que tornou Gabo um autor reconhecido mundialmente e trouxe à literatura latino-americana prestígio pela forma única de juntar mundos místicos e realidade, tão típica de povos que adaptaram suas crenças locais à religião dos invasores europeus. E Gabo, um materialista convicto, fazia do misticismo a metáfora para a resistência daquelas populações pobres, sobrevivendo a agruras e desconforto, suportando, a contragosto, senhores que se impuseram pela violência.

Para comemorar o cinquentenário de Cem Anos de Solidão, a Record lança nova edição (R$ 79,80), com capa dura lindíssima, que não me permitirá, no entanto, dispensar o volume dos anos 1970, da mesma editora, com desenhos de Caribé. Tenho que guardar os dois – por motivos pra lá de sentimentais. O mesmo não acontecerá com meus já bem manuseados exemplares de Orgulho e Preconceito, Razão e Sentimento e Emma, de Jane Austen.  Os 200 anos de morte da romancista levaram a Nova Fronteira a reunir em caixa as três novelas (R$ 102,90), que apresentam uma visão romântica, porém bastante cruel da vida das mulheres inglesas em meados do século XIX. Mesmo Emma, cuja protagonista é uma moça rica, sem necessidade de se casar para garantir sua sobrevivência, trata dos arranjos matrimoniais como muito mais que uma aspiração afetiva. Um retrato sarcástico sobre a condição feminina, que se alterou com morosidade vitoriana ao longo de dois séculos.