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A música invulgar de Déa Trancoso


Ao gravar Serendipity (Tum Tum Tum Discos), testamento aberto em plena vida, ela retratou em canções um ser humano que, diante das pedras no meio do caminho, não resistiria a alguns compassos de sua existência sem a música.São onze músicas só dela, uma com Chico César, uma com Badi Assad e outra com Rogério Delayon. Ele, convidado por Déa, coproduziu o álbum com ela e tocou violão de aço, de nylon, de sete e de doze cordas, guitarra, banjo, ukelele e viola caipira. Em sete faixas, apenas ela e ele estão juntos. E se bastam.“Água Serenada” é uma composição de Déa. Inspirada num mote de seu avô, o impacto é perturbador. As cordas de aço do violão de Rogério Delayon amparam o carinho que deságua da boca da intérprete. Os ouvidos reparam a saudade e buscam nela o conforto.“Minha Voz” é homenagem prestada por Déa a Gilberto Gil, canção rica em versos e em harmonia, que dá à autora a chance de se dar com voz ainda mais delicada. O violão de doze de Delayon ponteia e, como que se recusando a terminar algo tão belo, dá de repetir e de repetir um mesmo acorde... Fim.Em “Pra Tavinho” (homenagem a Tavinho Moura), Delayon toca violão com cordas de aço, viola caipira e guitarra. Mais uma moda bem mineira, suave, lírica, bela.Com Chico César, Déa compôs “Bordado”. O banjo de Delayon começa. O violão vem com a voz de Déa. Logo o banjo está de volta. O baião flui serenado.“Meu Colo, Tua Casa” (Badi Assad e Déa) é um dos mais belos momentos do disco. O arranjo e o violão são da própria Badi Assad. E é ela quem começa cantando. Mesmo sussurrada, sua voz ressoa. A vez de cantar passa a ser de Déa. A canção vai ganhando ares de doce força. Enquanto Déa canta para finalizar, ouve-se, lá longe, bem em segundo plano, a voz ainda mais sussurrada de Badi Assad... Meu Deus!“Gismontiana” (Déa) é valsa feita por Déa em louvor a Egberto (ele que bem a merece). Juarez Moreira harmonizou, fez o arranjo e tocou violão com cordas de nylon. Uma beleza!“Corpo” (Déa) é moda de viola tocada com sitar. A voz de Déa soa como a do cantador da feira. As cordas do instrumento originado da Índia fazem as vezes de viola, ponteiam como ela e resultam em instigante estranhamento.Déa Trancoso é única. Seus agudos são fiéis depositários de sua emoção. As palavras, espelho de vida vivida. A voz carrega a afinação, é parceira dela. Seus passos são dados com a convicta certeza de que a cada um mais ela se aproximará da realização da missão de ser, ela própria, música – fêmea, feminina, mulher, símbolos, quase sinônimos do dom de refletir a beleza em som.Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4