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Disputa


O segredo é chegar antes dos urubus.


Foi Deus quem jogou essa pistola velha fora, só pode ter sido. Ou alguém tentando se livrar da prova de um crime. Pouco importa. O que importa é que veio inteira, limpinha, enrolada na flanela e dentro da sacola de plástico.


E com uma bala dentro!


Foi Deus.


Como sempre, cheguei junto com o caminhão e antes da concorrência. Os preguiçosos esperam o dia clarear e perdem a disputa. Hoje foi osso: nenhum pedaço de carne inteiro, muita coisa podre, um rádio sem pilha, papelão molhado, folhas de papel sujas de molho nojento, panela amassada, tênis sem cadarço, nada que preste.


Até encontrar a pistola armada. Ô, sorte.


Mirei no peito do carniceiro mais gordo. Do que ousou bater as asas negras mais perto de mim (além de barulhentos, são desaforados, às vezes arrancam a presa de nossas mãos ). Eu não sabia que sabia usar uma arma, mas tudo tem uma primeira vez. O bichão caiu estatelado no meio das imundícies e os seus amigos, covardes, voaram para longe.


Esse vai para a panela, daqui a pouco, depois de depenado na água quente. Os temperos eu cato por aqui mesmo. A carne parece dura, mas tem mais peito do que os pombos. Sinto pena dos viventes. Mas tenho fome.


Amanhã, outros estarão de volta. E eu também (só preciso descobrir onde comprar as balas).


Vergonha por isso? Nenhuma. Nada mais me abala neste mundo mundano.


E fome não passo mais. Foi Deus.


(Luís Pimentel)