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AS DOÇURAS DE COSME E DAMIÃO


“Elas podem dar alento aos amargos da política nesta semana de tantas tensões e dúvidas”.

Texto dedicado aos cronistas Ruy Castro e Joaquim Ferreira dos Santos, sempre atentos defensores desses sabores perdidos.


Quem foi menino – e haverá alguém que não tivesse sido? – guarda na memória afetiva (e gustativa) um soluço de prazer e estima pela dupla Cosme e Damião, santos da Igreja Católica do século III celebrados tradicionalmente pelas crianças do mundo aos 27 de setembro. Crianças somente? Certamente que não. Especialmente quando há pouco todos os jornais televisivos exibiram reuniões de famílias de norte a sul do país a preparar freneticamente saquinhos de balas e doces a serem distribuídos às crianças das vizinhanças. Todas elas. Das ricas as pobres, das amigas ou mesmo as nem tanto.


A festa de Cosme e Damião me encanta desde a infância mais remota em Penedo, cidade colonial de Alagoas, plantada quase na foz onde o Rio São Francisco deságua no mar.

Ali, toda a meninada, inclusive eu, fazíamos jejum de véspera, para poder ingerir no dia 27 o máximo de guloseimas, de doces, de tudo que buscávamos de porta em porta. Portas que se abriam impreterivelmente com todas as delícias que nós, crianças, sonhávamos dia a dia.

Minha mãe, muito católica, mobilizava até as empregadas das amigas mais próximas para produzir na cozinha quilos e quilos de petiscos. Meu pai não comprava açúcar a granel. Encomendava com antecedência um saco de quase 50 quilos. Todinho consumido pelas dezenas de mãos da turma alegre comandada por minha mãe.


Mas isso me faz recordar quando a família veio morar no Rio. Tempos em que o trabalho braçal de criar delícias caseiras foi substituído pelos clássicos industrializados dos anos 60. O paraíso da criançada passou a ter nomes, apelidos e eram desejados como as mais sofisticadas iguarias. Hoje melancolicamente quase extintas, pela eterna falta de respeito às tradições que construíram o melhor de nossa memória comum.


Nos saquinhos de papel com desenho de Cosme e Damião jamais faltavam os pirulitos “Zorro”. Como obrigatórios eram os chicletes “Ping Pong”. E alguns saquinhos se orgulhavam das balas “Caramelo de Leite” ou “Boneco”. Onde foram parar essas gostosuras, meu bom Deus?

E segue abaixo um repertório de lembranças que adoçaram minha infância, tiradas de circulação sem dó nem piedade, por vagos modismos ou eventuais crises de vendagem.

O que foi feito dos “Drops Dulcora”, um luxo de época em vários sabores, como os hoje raros tangerina ou limão? E da cigarrilha de chocolate? Única maneira de fumar de mentirinha...

Abro aqui um justo parêntese para um lamento a ser proclamado com lágrimas aos olhos, o pirulito “Zorro”. Qual de nós, meninos há décadas não daria – hoje já velho – a vida para lamber o sabor de infância mais marcante, o “Zorro” feito com coco e caramelo? Era o mais pedido nos Cosme e Damião, indo até às lojinhas de todos, literalmente todos, os cinemas da cidade, do poeira mais vagabundo à grandiosidade dos Metros, São Luiz ou Rian.


Quem teve a infelicíssima ideia de parar com o inestimável gosto de lamber os dez, doze anos de idade com o pirulito “Zorro”? Memória do meu melhor afeto gustativo, embrulhado, lembro-me bem, com papel que já fazia reluzir nossos olhos infantis, o próprio Zorro, de capa e espada, pronto a sair do pirulito para enfrentar a imaginação de nós, meninos, que queríamos ser réplicas do ator espadachim Errol Flynn, já de espadas imaginárias às mãos.


Ainda juntando lamentos nostálgicos, meu peito se estremece ao agregar à minha viuvez dos sabores de infância maravilhas como as balas “Juquinha” – que soube agorinha mesmo que voltou a ser fabricada em São Paulo por empresário carioca. Verdade ou mentira? Encareço alguma informação, de preferência acompanhada por duas ou três balinhas. Pago bem...

E como a memória voa e o palato foi provocado, surgem mais evocações. Como a “Maria Bonita” – biscoito recheado com maria mole. Alguns devotos dos gêmeos Cosme e Damião, que foram grandes médicos que se fizeram santos (a história valeria ser registrada aqui mas o espaço está por se encerrar) recomendam que um saquinho a ser distribuído às crianças em 27 de setembro não pode deixar de ostentar o pé de moleque, a maria mole e o doce de abóbora.

E por fora correm ainda no imaginário das crianças que fomos há tanto tempo, iguarias infantis (só infantis? pergunto inquieto e com alguma audácia) como os suspiros, as jujubas, as cocadas. Até as pipocas... Bem como os flocos de arroz (chamados maleficamente de cocô de rato), dos quais guardo má memória. Por que? Como saber o que a língua de um menino de 12 anos pode repelir ou adotar?


Só mesmo pedindo a interferência dos queridos Cosme e Damião.


Ricardo Cravo Albin