Loading...

Fé cega no piano


Como fazer isso sem cair na mesmice de um CD laudatório, no qual, muitas vezes, a ânsia de canonizar pode levar a descuidos musicais que findam tornando mero penduricalho a intenção desse louvor?

Bem, em primeiro lugar, convidando Bruno Migliali (contrabaixo) e Marco Lobo (percussão) – formação instrumental adequada para recriar canções que são parte da história musical contemporânea. São músicos capazes de, com seus inequívocos talentos, acrescentar mestria à ideia de reacender a música de Milton Nascimento e, ainda por cima, dar a ela uma leitura íntegra.

Em segundo lugar, a forma de apresentar o repertório em três suítes (uma com quatro, outra com seis e a terceira com duas músicas) e, depois, apenas mais quatro canções.

Abrindo o álbum, a “Suíte 1” é integrada por protótipos da fecunda produção de Milton Nascimento: “Fé Cega, Faca Amolada” (parceria com Ronaldo Bastos), “Maria Solidária” (com Fernando Brant), “Noites do Sertão” (com Tavinho Moura) e “Ponta de Areia” (com Fernando Brant). E Leandro, Bruno e Marco demonstram, de cara, que a homenagem acrescenta ainda mais riqueza ao que já é histórico. As músicas veem e vão sem atropelos nem invencionices harmônicas para justificar mudanças de tonalidade. Suingue e precisão rítmica estão presentes. Improvisos reforçam a atmosfera melódica das composições. Harmonias consagram a inventividade já antevista por Bituca.

A estética musical de Milton Nascimento carece, justamente, de quem afira seus detalhes de harmonia e poética, seus devaneios e melindres, mineirices e carioquices, espantos, glórias, fugas e contrafugas, contratempos e contracantos. Ao lançar luz sobre tal obra, o trio ilumina a si próprio, a beleza musical iluminada faz-se mais rica, e suas performances ficam perto do sublime.

Dentre tantas, lá estão também “Cais” (parceria com Ronaldo Bastos) e “Beco do Mota” (com Fernando Brant), esta cantada por Milton Nascimento. Mas soa estranha a inclusão de “O Que Será”, de Chico Buarque, que, apesar de bela, fica perdida em meio a músicas só de Milton Nascimento.

Mas, principalmente, o preito tem Leandro, cujo piano ora é ele à sua imagem e semelhança, ora incorpora Keith Jarrett – passando por Hermeto Paschoal, chegando a Bill Evans, indo a Laércio de Freitas, tangendo André Mehmari e voltando a ser ele mesmo... Todos Leandro Braga!

No piano de Leandro cabe toda a música do planeta.  Por ele chega-se a sons de outros cantos; com ele caem os muros que tentam separar o clássico do popular; de suas teclas brotam desde a mais intrincada apojatura até o mais lírico ornamento, desde o mais fortíssimo até o mais pianíssimo, desde o ralentando até o afretando. Enfim, do primeiro ao último minuto de música de Fé Cega, o piano de Leandro Braga é muitos num só.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4