Loading...

Inéditas belezas


Ao entardecer do sol, almas em desalinho buscam cobrir-se com sua tamanha energia. Apenas um viver intenso possibilita abranger o canto pleno de mistérios, que surge como que do nada e se faz armadura contra maus-olhados.

De onde vem o canto que clareia o dia e o acompanha até que a noite abra seu véu? Ah, os enigmas que brotam ávidos para desvendar a vez primeira em que o canto ecoou. Como se apresenta o receptáculo de tal poder?

Afinal, que canto  é esse? Infernal, temem uns; angelical, outros retrucam; indecifrável, gritam os descrentes; palpável, apostam os crédulos. Quanto tempo ainda terão aqueles que se dão ao desfrute de buscar traduzir com palavras os desatinos do canto de rara beleza?

Perguntas e respostas a serem formatadas e ordenadas por quem sente no canto um quê de delirante sabedoria. Canto eterno, já que dele saltam verdades ainda não ditas.

Estava eu envolto nestas questões quando ecoou a primeira música do disco Mestiça. A voz que sobressaiu aos primeiros toques da percussão veio-me como uma miragem, posto que em vão tentei tê-la nas mãos. Voz esta de uma mulher que se chama, simplesmente, Jurema.

Com foto de Jorge Bispo, sob um projeto gráfico de Janara Lopes, na capa do CD (Saravá Discos), encoberto por folhagens e galhos secos, estão seu rosto, contemplativo, mirando um futuro que só ela antevê, e parte do tronco coberto por uma camiseta, braço e mão, cujo dedo indicador roça seu queixo. Instantâneo de uma cabocla chamada Jurema... Salve ela, salve!

Compartilhando seus dons com o canto da baiana Jurema, em Mestiça cantam com ela Chico César e Zeca Baleiro. Tem ainda as composições de seu conterrâneo Tiganá Santana, de Elomar, de Roberto Mendes e Nizaldo Costa, de Fábio Paes e Enoque Oliveira, de Cássio Calazans e Alexandre Processo, de Marcos Vaz e Zeca Baleiro, e de Patrício Hidalgo. E mais os arranjos da cantora moçambicana Lenna Bahule, de Marcos Vaz, de Leo Caribé Mendes, de Cássio Calazans, de Tiganá Santana, e de Letieres Leite. Não para por aí: o álbum conta também com instrumentistas de insuspeito gabarito.

Nas onze faixas do CD, mais uma remix, fundem-se linguagens musicais díspares com versos despojados. Cantando em várias línguas, embora não seja isso que notabilize a intérprete que é Jurema, nasce o canto, afiado, suingado.

Conheça esse trabalho musical de alta vivacidade. Deixe-se levar aonde você talvez se sinta um estrangeiro. Busque em suas estranhezas o suingue contido nessas canções e o lirismo dos sons emitidos pela voz e pela alma de Jurema. Um canto feito bússola a apontar inéditas belezas.

Será que é esse o “canto” que tantos buscamos, penso? Esse é um deles; acabo.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

PS. E lá se foi Zé Menezes. Ainda um menino aos 93 anos. Silenciadas as suas cordas, resta-nos a lembrança do som que delas ele tirava... Meu Deus!