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MPB, sigla feminina e plural


A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Ritmos masculinos. Másculos vocábulos. Deles nos valemos para sonhar; deles nos vestimos para dançar; deles nos imbuímos para fazer de conta que a encrenca não é com a gente. Ela é nossa, sim; como nossos são os ritmos que nos embalam do berço à tumba.A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Ritmos masculinos. Másculos vocábulos. Todos feitos para serem como os homens que de tudo e de todas tomam conta. Farra de virilidade para dar e vender; emprestar e tomar. Assim é a nossa música popular do Brasil de calça e cueca; de paletó e gravata borboleta; voz grossa e gogó saltado.A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Ritmos masculinos. Másculos vocábulos. Sem tempo para o feminino, a música brasileira feita de choro, de frevo, de samba; de ritmos masculinos e másculos vocábulos se revela pelo canto de seus homens instrumentistas e cantores e compositores e poetas. Desde sempre assim é.Faz tempo assim não é mais. Há tempos a mulher invadiu a praia que sempre foi masculina; arrombou a festa dos moços; desandou o bolo do rapaz; talhou o leite do vovô; ajoelhou-se o canto ao seu encanto feminino; carimbou seu ventre de mocinha com o som cheiroso de amor. E o cantador transmutou-se em cantadora; o violeiro rendeu-se à viola sem eira nem beira; o estradeiro comeu poeira ao som da estradeira de viola e cantoria bem posta.A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Ritmos masculinos. Másculos vocábulos. Antes, Chico Alves, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Cyro Monteiro, Dorival Caymmi, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Dick Farney, Lúcio Alves, Cauby Peixoto, João Gilberto, Jair Rodrigues, Altemar Dutra... É claro que houve Chiquinha Gonzaga, desbravadora. Mas ela não cantava. É claro que havia, há e haverá Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Dircinha Batista, Carmélia Alves, Emilinha Borba, Ângela Maria, Maysa... Mas a voz que prevalecia no ar de nossa terra sempre teve o acento da voz masculina. Os cantores eram das multidões; as cantoras, rainhas, quando tanto.A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Ritmos masculinos. Másculos vocábulos. Agora nem tanto mais. Hoje ela é predominantemente feminina. Agora, o samba, o frevo e o choro viraram palavras femininas, ao contrário do que indica o gênero de cada uma dessas palavras. Ao menos na interpretação do som que sai da garganta de mulheres que ora povoam o universo da Música Popular Brasileira, o frevo, o choro e o samba tornaram-se, de fato e de direito, fortes palavras femininas.A música brasileira é feita de choro, de frevo, de samba... Femininos ritmos. Fêmeos vocábulos. E quase não surgem mais vozes masculinas. Escafederam-se, como que por encanto, os cantores; foram-se; evaporaram-se nos ares brasileiros por onde viajam, aos quatro ventos, as ondas radiofônicas. Quase não há mais intérpretes homens; não existem mais os cantores, ou ao menos não têm se destacado o suficiente para que possamos trazê-los abundantemente para ouvi-los em nossas casas, carros, computadores, iPods, celulares, rádios, walkmans, MP3 e 4 e quetais.Hoje, a sensação é que o fenômeno da feminilidade vocal se multiplica geometricamente a cada mês. A vez agora é delas que cantam com voz suave ou estridente; com doçura ou ferocidade; com ardor e paixão; com lágrima e fogo. Elas é que agora são as figuras carimbadas; o trunfo no carteado; a bola a ser jogada; o truco a ser gritado.Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4Este texto é uma versão condensada do meu artigo "Quem são essas mulheres?", publicado no Livro do Ano 2008 da Enciclopédia Barsa, previsto para ser lançado nas livrarias em junho de 2008.