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Música em estado de graça


Para a gravação, foram à igrejinha carioca de Nossa Senhora de Bonsucesso. Lá, num ambiente propício à reflexão e à entrega, deixaram que os temas fluíssem sem pressa, mansamente, como se tocados com as mãos postas em regozijo à música. Ali o tempo era ditado pela expressão instrumental consagrada à beleza.

Tudo em Jasmim conduz a um plano de inesperados significados: cada sopro se revela sugerido numa imagem que o complementará; cada acorde traz em si a suprema delicadeza de se postar em reverente simplicidade perante o mundo real; cada toque da marimba ou da percussão nos bulirá a imaginação. Conjunção estreita entre o Deus da igrejinha e o Deus que cada um carrega dentro de si, a trinca de virtuosos virou agente transformador de sons em vida: música em estado de graça.

No repertório, seis composições de Gilson Peranzzetta, também autor dos arranjos (“Cantos da Vida”, “Jasmim”, “Nós, as Crianças”, “Mansamente”, “Para um Anjo” e “Orvalho” sendo as três últimas inéditas), e seis do compositor catalão Federico Mompou (1893/1987): “Impressiones Íntimas I, II, III e IV”, “Pájaro Triste” e “Secreto VIII”.

“Impressiones Íntimas I” inicia o concerto. O piano e o sax soprano dão conta da linda melodia. Uma melancolia arrebatadora toma conta do ar durante a interpretação do tema.

Segue-se “Impressiones Íntimas III”. A marimba de vidro começa. O piano está junto. Logo vem a flauta. A marimba sola. Piano e flauta soam juntos. A flauta brilha. Após se revezarem em solos e improvisos, fim.

“Jasmim” começa com piano, marimba e flauta. Logo o piano e a marimba se destacam. A marimba sola. Os três voltam a se juntar. O piano improvisa. Os três retomam o som. A flauta sola, e logo piano e marimba se juntam a ela para pulsar junto. O piano toca para a marimba improvisar. O piano agora é quem sola durante inúmeros compassos. Marimba e flauta voltam e os três tocam para fechar a tampa.

“Secreto VIII”, um tema que remete à música árabe, encerra o concerto. O talento de Mompou se mostra ainda mais amplo pelas mãos de Peranzzetta, Senise e Ribas. Um belo solo de percussão se soma a intervenções precisas do piano e do sax soprano.

Movido a “impressiones íntimas”, a música desliza “mansamente”, como se feita “para um anjo”. Em homenagem a tantas novas surpresas confidenciais, mil “cantos da vida” fazem o tempo voltar, exalando aroma de “jasmim”, cuja seiva anima o “pájaro triste”. “Nós, as crianças”, mesmo quando envelhecemos, ansiamos nunca perder a magia da alegria sentida ao dormir sob as gotas do “orvalho” da noite, que guarda o sonho “secreto” de tudo sempre ser como no dia em que Gilson Peranzzetta e Mauro Senise fizeram o som soar naquela igrejinha de Nossa Senhora de Bonsucesso.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4