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Ninguém é obrigado a gostar de ler


Ninguém é obrigado a gostar de ler. Ninguém precisa gostar de ler. Mas muita gente gosta de fingir que tem o hábito da leitura. Poucos são sinceros o suficiente para dizerem que só leem o que é publicado em redes sociais e, às vezes, o noticiário. Não chegam a ser sequer o que Agatha Christie definiu, em uma de suas novelas, como o leitor comum: aquele que gosta de biografias e de romances policiais.

Há quem queira se mostrar um leitor sofisticado e diga que gosta de biografias. Ao serem indagadas sobre a última leitura, essas pessoas poderiam demonstrar, pelo menos, algum conhecimento do noticiário e mencionar Uma mulher vestida de silêncio (Record, R$ 74,90), de Wagner William, a detalhadíssima reconstituição da vida da ex-primeira dama Maria Thereza Goulart. A bela jovem do interior do Rio Grande do Sul foi muito mais do que uma esposa troféu para o rico, poderoso e mulherengo político que se tornou presidente do Brasil com a renúncia de Jânio Quadros. Tímida, mas decidida, ela imprimiu vigor à figura da primeira-dama, buscando recursos para obras sociais, além de se tornar um modelo de elegância, ao vestir modelos de alta-costura criados pelo brasileiro Dener. À parte as inevitáveis comparações com Jacqueline Kennedy, Maria Thereza sempre foi discreta e uma mulher de sua época, reclamando, mas se conformando com as escapadas do marido, um comportamento aceitável para os chefes de família dos anos 1950/1960. Mais do que a vida do casal, que deixou o Brasil em 1964, quando os militares tomam o poder, o livro mostra a transição do país de “subdesenvolvido” para uma posição de destaque no cenário internacional. E aproveita para deitar por terra a imagem de pró-comunista de Jango, que se apresentava como católico praticante.

Outra obra que poderia ser facilmente mencionada por quem se diz um leitor regular é o romance Meninos de Nápoles (Companhia das Letras, R$ 59,90), do jornalista italiano Roberto Saviano, que vive com escolta de sete policiais desde a publicação de Gomorra (Bertrand Brasil, R$ 49,90), um livro-reportagem sobre as atividades da máfia siciliana, a Camorra. Sua incursão na ficção fala sobre as paranzas, gangues de adolescentes que trabalham para os chefões da Camorra, desfilando pelas ruas da cidade armamento de guerra, à semelhança dos jovens traficantes das grandes cidades brasileiras. Saviano, jurado de morte pela máfia, já foi citado pelo peruano Mario Vargas Llosa como quem “restituiu à literatura a capacidade de abrir os olhos e as consciências”.

Quem gosta de aparentar que é um leitor contumaz não pode é citar Devagar – Coimo um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade (Record), que trata da contracultura de resistência à vida acelerada no mundo contemporâneo. O jornalista escocês Carl Honoré é um dos principais divulgadores do Slow Movement e defende que se deixe de lado a angústia de cumprir diversas tarefas em alta velocidade para aproveitar momentos de prazer. Cochilar depois do almoço, fazer sexo sem pressa, sentar-se para comer e degustar os alimentos, ler versões integrais de obras clássicas, incluindo contos de fada são alguns dos prazeres dos quais abrimos mão em prol da urgência em “aproveitar cada minuto”. Uma urgência que combina com quem alega “falta de tempo” para ler, a ponto de nem se recordar das últimas leituras.