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O aventureiro das canções


Já me referi a ele como cronista do improvável, alguém que busca temas que não se classificam entre os mais fáceis, são sempre arejados. E mais: ao escolher canções alheias para interpretar, age como se dele elas fossem, como se dele fossem seus versos.

Neste novo trabalho, Zeca, o cantor, se esmera em divisões rítmicas que salutarmente “maculam” o esperado; o compositor Zeca avança ainda mais na linguagem pop, impregnando-a de irreverente atualidade, subvertendo conceitos e alargando experimentações.

Extremamente diversificado, ainda assim o repertório é coeso. Tem um quê de algo que nunca estanca, que está sempre em busca de alcançar o que para muitos pode parecer inatingível, menos para quem tem em si o dom de ser um aventureiro da música, aquele que não mede esforços e nem poupa riscos de se expor, sem eira nem beira, aos que o escutam.

O rap “O Desejo” (Zeca Baleiro) abre o disco. Zeca dá asas à sua verve poética, valendo-se de palavras que brotam como o sangue de um talho na pele: Você quer rezar, mas pra quem?/ Se os deuses estão mortos/ Não há mais divindades, ritos, ninguém/ Pra ouvir você no confessionário/ Na noite escura, gelada, vazia/ Contando os seus pecados sem perdão/ Sua omissão por não dar a mão/ Ao irmão que precisa de cigarros/ Comida, água, consolo, camisa. Impressiona o valor que ele dá à musicalidade das palavras.

Uma versão roqueira para “Disritmia”, de Martinho da Vila, mostra que Zeca não reprime suas ideias musicais. Sua interpretação dá uma nova intenção ao samba, levando-nos aos lábios um sorriso de aprovação.

Dentre outras, tem uma parceria de Zeca com Alice Ruiz, “Quase Nada”, cujos versos sugerem as dúvidas que se abatem sobre inquietudes que buscam não explicações, mas experimentos para conviver com o ciclo existencial: Será um atalho/ Ou um desvio/ Um rio raso/ Um passo em falso/ Um prato fundo/ Pra toda fome/ Que há no mundo.

Uma das faixas bônus, “A Maçã”, de Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Mota, é outra cujos versos atestam a importância que têm as palavras para Zeca Baleiro, servindo-lhe de norte: Amor só dura em liberdade/ O ciúme é só vaidade/ Sofro mas eu vou te libertar/ O que é que eu quero/ Se eu te privo/ Do que eu mais venero/ Que é a beleza de deitar.

Assim vejo Zeca Baleiro: um cara que “profana” convicções, tratando-as com o devido desrespeito.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4