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O escultor de sons


O vento muda a sombra, esculpe seu corpo, dá-lhe vida e, a seu bel prazer, retira-lhe tal direito. A sombra tem no vento o senhor que detém seu controle. Vento que esculpe a pedra, encapela o mar, embalança a palha do coqueiro, leva e traz notícias de cá e de lá. Vento escultor de destinos, artesão de belezas duras e cruas, nuas e cálidas... Vento.

Vento... Tempestuoso, brando, frio, quente, início e fim de movimentos. Vento que bate a porta, que abre janelas, que nos mostra o sol e o esconde. Vento que brinca com nuvens, com elas encobrindo o céu e descortinando-o para revelar o azul e o cinzento e todas as nuanças de cor que nos chegam dia e noite.

Mas há os que tentam conhecer-lhe o caráter, sentem seu cheiro e veem brotar do vento a paixão, findar pelo vento a melancolia. Há esses e tantos outros, mas apenas aos que têm alma de artesão é dado o direito de saber o vento, e tê-lo a seu lado como parceiro, instigando, revelando-se a eles, fazendo-os escultores de seus sons e formas. Um desses privilegiados é Itacyr Bocato Jr., um dos maiores trombonistas do Brasil, que está admirável em seu álbum duplo Esculturas de Vento (bela é a ilustração de Maurício Negri para a capa), lançamento do Selo SESC SP (vivas à sua ousadia!).

Mas dessa vez a excelência não está só no virtuosismo de seu trombone. Acostumado a integrar e criar arranjos para orquestra, Bocato... compôs! E nas dezesseis faixas dos dois CDs, quinze de sua autoria, fez-se soberbo nas estruturas melódica, harmônica e rítmica.

A sua genialidade? Compor canções para os instrumentos e veem brotar do vento a paixão, findar pelo vento a melancolia. Dar ao instrumentista o poder de ser agente principal de criações de alta qualidade é a riqueza que Bocato agrega à sua vida de músico brasileiro.

Desde o trombone, quase sempre os sons graves predominam nos arranjos. Cada faixa tem um espírito musical diferente, mas todas comungam com a personalidade de seu criador: variações sonoras, variantes rítmicas, dissonâncias e estilos sem rótulos. Em dado momento, temos a sensação de estarmos ouvindo uma peça erudita; noutro, um tema jazzístico. Às vezes o improviso é suingue puro; às vezes ele é roqueiro. Mas tudo é muito inquieto, moderno, intrigante, suave, ríspido.

Contemporânea é a música que Itacyr Bocato Jr. compõe, orquestra e toca. Contemporâneos hão de ser os ouvidos que ouvirão Esculturas de Vento. Lá estão trombone e Bocato, músicos e timbres instrumentais vários, estão vento e sombra esculpidos em acordes. Lá está a música instrumental em forma de arte escultural e sonho.


Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4