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O estupro nosso de cada dia


A abertura de Lolita, de Vladimir Nabokov, é uma das mais belas construções da literatura contemporânea, preparando o leitor para uma narrativa poética sobre um pervertido que se sente atraído sexualmente por uma pré-adolescente, na antevéspera da puberdade. Depois da morte da mãe da menina, com quem havia se casado, Humbert Humbert, o narrador, droga Lolita para estuprá-la, mas é surpreendido pela volúpia da jovem, que o seduz.  A tragédia magnificamente composta por Nabokov até certo ponto romantiza uma das mais antigas práticas da humanidade, o estupro de incapaz, o tema da semana no Brasil, horrorizado com a violência de dezenas de homens contra uma jovem carioca.

A covardia do estupro tem representações literárias diversas, quase todas levando à rendição da vítima ao agressor, que, na violência, domina a situação. Nabokov trata da fixação sexual masculina pela juventude envolvendo o leitor da mesma forma que a vitima seria “conquistada” pelas artimanhas do agressor. A cultura do estupro, com a capitulação de mulheres diante de homens rudes, mas que só querem o bem dos objetos de desejo, tem um de seus pontos altos na comédia A megera domada, de William Shakespeare. A incontrolável Catarina, literalmente vendida pelo pai ao bruto Petrucchio, submete-se às ordens do marido para evitar confrontos em que acabar derrotada pela força física e inteligência do  grosseirão. A misoginia de Shakespeare é compensada por outras peças em que mulheres se mostram ardilosas o suficiente para desistirem de combater adversários que só levam ao desgaste na guerra entre os sexos. Uma misoginia que é combatida por Sherazade, encantando o sultão com histórias que adiam sua morte por 1001 noites. Uma cultura do estupro que se cristaliza nas lendas da mitologia grega com Zeus, o mais poderoso dos deuses, violentando quem lhe agrada, como a irmã Deméter, que dá à luz Perséfone, que acaba raptada pelo tio Hades.

Os relatos de subjugação de mulheres e de concepções forçadas vêm da Antiguidade. Para judeus, mulheres levam ao pecado, desde Eva, que convida Adão a provar o fruto proibido.  Muçulmanos aprendem que Deus recomendou a Maomé que mantivesse suas mulheres confinadas à casa. No mundo real, a mutilação genital feminina é uma prática ancestral ainda em voga em diversos países, mesmo quando proibida por lei e sem qualquer justificativa religiosa. A militante senegalesa Khady descreve em Mutilada (Rocco, R$ 23) o sofrimento pela retirada de seu clitóris aos 7 anos, mas não consegue se recordar da noite de núpcias, aos 13, idade em que foi forçada a se casar com um primo.

Aos que acreditam na proteção das mulheres ocidentais de boa condição financeira, A clínica (Record, R$ 44,90), do jornalista Vicente Vilardaga, lembra os casos de assédio e abuso sexual contra o médico paulista Roger Abdelmassih, um dos mais festejados especialistas em reprodução assistida do Brasil, condenado por estupro de 52 mulheres, em 2009.  Como Hubert Hubert e tantos outros criminosos, Abdelmassih drogava suas pacientes, que tiveram a coragem de denunciá-lo. A cada 11 minutos há uma notificação de estupro no Brasil – como se estima que apenas 35% dos casos sejam registrados, é possível que a relação seja de um estupro a cada minuto. Em vez de expurgar Lolita e banalizar o estupro, este é o momento de reler e buscar a ótica da vítima – o leitor que cai na lábia do predador, que está à espreita, muito mais próximo do que se imagina.