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O rei em carne-viva


O autor pesquisou a vida de Roberto Carlos durante 15 anos. Foi fundo em fatos que só intuíamos. Esmiuçou cada palmo de chão por onde o rei passou. Desvendou mistérios que inspiraram o compositor em muitas de suas mais importantes e famosas canções. Revelou as emoções, mas mais do que isso, expôs as dores reais de Roberto Carlos. Pleno em detalhes, acabada a leitura do livro, fica a impressão de que passamos a conhecer o rei mais profundamente. Nossa intimidade com ele parece se tornar maior do que com alguém mais próximo de nós. À distância, sentimo-nos cúmplices de Roberto Carlos, solidários com ele por suas manias - das mais singelas às mais estranhas. Torcendo ainda mais por seu sucesso. Lamentando emocionadamente por suas perdas tão doloridas. Paulo César Araújo despiu o rei. Tirou-lhe a pele, deixou-o em carne viva e serviu-nos como banquete. Ávido, devorei cada página do volumoso livro como se ela fosse um naco de alma real. Escrito com o rigor determinado por uma pesquisa séria, o livro é a exposição pública da vida de um dos maiores, se não o maior, ídolos nacionais. Todavia, o autor pareceu sucumbir à tentação de nele colocar todas as informações coletadas em uma década e meia de trabalho. Por muito extenso, Roberto Carlos em detalhes se fez palavroso demais. Tivesse ele a metade de páginas que tem, ganharíamos todos. A leitura se afoga em reviravoltas que o autor tem de fazer para dar conta de nos revelar tudo o que lhe foi possível saber pelas pesquisas. Mas, corajoso, Araújo não se limita a apresentar fatos históricos, vai além: dá opinião; descreve fases da música brasileira e as analisa; reproduz declarações e toma partido. Não se nega a mostrar a cara. Pode-se não concordar com Araújo, mas jamais vê-lo como mero repetidor da história alheia. Mas por que então Roberto Carlos está processando o autor e sua editora? O livro é bom? Diz a verdade? Então, ora bolas, por que o rei implicou com ele? Segundo seus advogados, disposto a ir até o fim com a ação contra o que vê como uso indevido de sua imagem, Roberto escancara sua insatisfação por ver sua intimidade vasculhada e entregue à curiosidade de um Brasil que o idolatra.Por todo seu trabalho, é lícito supor que, mais do que qualquer um, Paulo César Araújo conhece, de maneira intensa e aprofundada, cada escaninho em que Roberto Carlos guarda ou esconde seus sentimentos. Assim, cabe outra pergunta: por que o autor não foi capaz de prever a reação do homem de quem ele nos revelou o âmago de suas idiossincrasias? Se para mim isso é estranho, que o diga Roberto Carlos, ao ver escancaradas suas verdades. Por isso eu creio que o rei está coberto de razão ao buscar na Justiça a reparação à que acredita ter direito. Ninguém pode condenar um homem por defender sua liberdade e se proteger da curiosidade alheia. Eles, seus sentimentos, são sua posse exclusiva. Esconde-os e os abre quando quiser e para quem bem entender. Araújo certamente sabia que atingiria o peito de um homem incomum, ao transcrever, na página 331, uma declaração de Roberto Carlos: "Bicho, eu sou um sujeito irritantemente coerente"; ele que opinou, na página 424, sobre o álbum lançado pelo rei em 1969: "Fato raro na discografia de Roberto Carlos, aquele foi um disco sem Deus". Paulo Araújo e a Planeta, muito provavelmente, sabiam que seriam questionados nos tribunais pela biografia não-autorizada. Quisessem evitar problemas com o biografado, a editora e o autor, principalmente este que, repito, mais do que ninguém deveria saber que suas palavras atingiriam em cheio a alma do rei, poderiam ter sido mais cuidadosos.Pergunto por fim: teria o livro a estupenda vendagem que tem hoje, caso sua divulgação se mantivesse restrita às páginas de resenhas literárias?

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4 e súdito do rei Roberto Carlos.