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Onde o vento faz a curva


Como se soprasse linearmente, sempre à frente, o vento nos conduzia. Ao longe, luzes anunciavam o nosso destino. O vento dominical soprava ainda mais forte quando entramos na vila. Com um reverente meneio de cabeça, o vento nos apeou. Graças a ele amanhecemos num lugar majestoso, à beira-mar. Lá, na terça-feira, começaria a sexta edição do Festival Choro Jazz de Jericoacoara.

Tudo “culpa” do Capucho, gaúcho arretado, um empreendedor à frente do tempo e responsável pela ideia genial de levar música brasileira de qualidade a um lugar tão aparentemente distante, onde o vento agita a calmaria e os coqueiros vencem a areia marinha, transformando o deserto cultural em oásis. (“Aparentemente” porque com o vento, o tempo da viagem deixa de ser um contratempo).

Terça de manhã, espalhadas pela vila de Jeri, começaram as oficinas. Dentre outros, Celsinho Silva ministrou os primeiros mandamentos do pandeiro para quem o ouvia como se principiasse uma página nova em seu caderno. Feito porta se abrindo em mais saídas, François de Lima ensinou improviso a partir do trombone. O italiano Marcele Gabrielle tocou clarineta, tão bela que trazia em si o frescor e a alegria. E Rogerinho Caetano, comandando um grupo de violonistas, fraseou com seu violão de sete cordas. À tarde, Arismar do Espírito Santo incentivou os jovens a tocarem juntos. E o pianista André Mehmari deu dicas de como criar arranjos que, no futuro, poderão reciclar conceitos.

E foram dois shows por noite na pracinha de Jeri: louvo aos quatro ventos os improvisos dos violões do Duo Taufic, e louvo a ventania que deu asas às mãos do baterista Marcio Bahia.

Louvo a brisa marinha que nos arrepia os pelos diante do som dos violões do Duofel; e louvo o balanço que o vento emprestou aos choros tocados pelo sexteto Água de Moringa e também pelo craque do bandolim, Joel Nascimento.

Louvo a guitarra de Ricardo Silveira, que parece ser seu terceiro braço – irresistível; e louvo o vento de Jeri que fez Francois de Lima alçar voo em sua apresentação.

Louvo o pianista André Mehmari e o clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, A apresentação deles foi a que mais me emocionou, junto com a de Ricardo Silveira; e louvo o pianista português Mário Laginha e seu Novo Trio.

Louvo a banda Choro Jazz, integrada por jovens alunos da escola de música de Sambaíba (pertinho de Jeri), outra iniciativa do Capucho; louvo a cantora Ana Cristina, que eletrizou a garotada na pracinha de Jeri; louvo as crianças da Filarmônica Israel Gomes, de Carnaíba, no sertão pernambucano – comovente.

Louvo João Donato, homenageado pelo festival por sua obra e por seus oitenta anos de vida. Ele que, com um quarteto de grandes músicos, contagiou o público.

Noite de domingo e a praça flutua numa louvação coletiva à música. Entram Celsinho Silva (pandeiro), Rogerinho Caetano (violão de sete), Eduardo Neves (flauta e sax) e Luis Barcelos (bandolim). É o Só Alegria, cujo show foi para mim a grande surpresa do festival, junto com os do Duo Taufic e do Bandão Choro Jazz. Este último, integrado por jovens músicos de Jeri aperfeiçoados pelas oficinas do festival, encerrou o evento com um som de altíssimo nível.

Findo o festival, o vento terral  soprando um “até breve” – olha só, eu não vi, mas há quem jure tê-lo visto sorrir –, relembro versos de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto: É belo porque corrompe/ Com sangue novo a anemia/ Infecciona a miséria, com vida nova e sadia/ Com oásis o deserto, com ventos a calmaria.

E assim a vida segue em Jericoacoara, lugar onde o vento faz a curva, e onde existe um oásis de educação, com sangue novo infiltrando-se ignorância adentro. Novos ares ampliando consciências.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4