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Paixões góticas para as tardes de outono


A trama é conhecida. Mulher jovem, um tanto ingênua, desprovida de parentes ou amigos, casa-se com homem maduro e rico, vão morar na mansão da família dele, em região fria e soturna, onde há fantasmas/criados ou parentes saudosos/ para assombrar a jovem noiva. Há pelo menos 250 anos o romance gótico usa a mesma fórmula para arrebatar o interesse de multidões. Com elementos da atualidade (referências a redes sociais, astros pop e cenas de sexo mais explícitas do que em seus primórdios), o gênero se mantém vivo em títulos como A criança do fogo (Bertrand Brasil, R$   46,90), de S.K. Tremayne, contrariando previsões de quem previa sua extinção pela banalidade dos enredos, dois séculos atrás.

Entre os detratores do romance gótico, o maior destaque foi Jane Austen, que o considerava diversão vulgar para jovens descerebradas e até criou, para satirizá-las, a protagonista  de A Abadia de Northanger (BestBolso, R$ 24,90), que espera viver uma aventura romântica em cenário sombrio.  A despeito do desprezo da crítica, um clássico da literatura inglesa, Jane Eyre (Zahar, R$  64,90), traçou o roteiro do romance gótico que se mantém até os dias de hoje: jovem preceptora pobretona é seduzida por um homem de passado misterioso, que esconde a existência de sua amalucada mulher, de quem ele nunca se divorciou.

 

Misturando elementos semelhantes, em 1938, a inglesa Daphne du Maurier lança Rebecca, a mulher inesquecível (Amarilys, R$ 40), no qual um ricaço leva a noiva para morar em sua espetacular propriedade na Inglaterra. Se a protagonista jamais tem seu primeiro nome revelado – é conhecida apenas por Mrs de Winter, depois do casamento -, todos falam sem parar sobre a primeira mulher do marido, um fantasma tão presente quanto assustador. O sucesso de Rebecca, principalmente depois da adaptação cinematográfica estrelada de Alfred Hitchcock, até hoje levanta polêmica no Brasil, onde, em 1934, Carolina Nacubo publicara A sucessora (Instante, R$ 42,90).  Os dois romances falam de  uma jovem casada com um viúvo que não consegue deixar para trás a memória de sua primeira mulher, devido ao empenho de uma governanta  que cultua a imagem da ex-patroa. (Não seria a única suspeita de plágio envolvendo Daphne du Maurier: a autoria de seu conto Os pássaros, lançado em 1952, e transformado em filme de Hitchcock em 1963,  chegou a ser contestada por Frank Baer, autor de romance com o mesmo título, publicado em 1936. Como Carolina Nabuco, no entanto, ele desistiu de processar a inglesa. )

A criança do fogo tem como cenário hostil  penhascos na Costa da Cornualha, que encobrem  minas de carvão desativadas. Numa delas desapareceu a primeira mulher do advogado bem sucedido , casado com Rachel, a narradora, de uma ingenuidade impressionante para alguém de 30 anos em tempos de Internet. A função de cultor da imagem da falecida fica a cargo do enteado da mocinha, vinda de um meio paupérrimo.  Tremayne, um dos pseudônimos do prolíficuo jornalista Sean Thomas, autor de thrillers com temas religiosos e arqueológicos, não tem a força estilística de Daphne du Maurier.  Sua protagonista tem personalidade  tão densa quanto as mocinhas de romances vendidos em banca de jornal.  O príncipe encantado muda de atitude de maneira mais surpreendente que Danaerys  deixando em cinzas Porto Real, em Game of Thrones. Mas o livro, numa edição caprichada, com reproduções de fotografias da inóspita região, é de leitura fácil e agradável em tardes chuvosas de outono.