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Pulga atrás da orelha


- Não é para fazer fofoca, que não sou dessas, mas dizem aí que sua irmã está saindo com um homem casado. Deve ser muito chato ter um pai beberrão.Suportou a tudo com abnegação e humanismo (com uma pulga?), mesmo tendo pensado algumas vezes em mover ação de despejo. Afinal, bastava um safanão na própria orelha. Mas acabava voltando atrás, se deixando levar pela emoção. Lembrava-se dos desvalidos da mais valia, dos filhos sem pais, dos milhares de velhos abandonados, pernilongos e baratas que se arrastam pelos cantos à mercê da própria sorte. E deixava Alzira ficar, não custava tanto. Apenas o sacrifício de escutar – tão próximo – o que não queria:– Abre o olho com esses amigos! Se afasta daquela sirigaita! Dá uns conselhos ao teu irmão! E tira o dedo daqui que eu estou falando!– Cala essa boca de pulga, Alzira – berrou um dia. Passou uma semana completamente muda, a sonsa. Ele respirou aliviado, achando que estava salvo para sempre. A pulga atrás da orelha acordou no domingo seguinte, em pleno Maracanã, dia de Fla X Flu decisivo:– Sei não, mas alguma coisa me diz que o Flamengo perde essa. Sonhei com o Renato Gaúcho a noite inteira. Dito e feito. Fluminense um a zero. Campeonato perdido. Cerveja quente no Fla-Bar durante o jogo e filas intermináveis no banheiro. E gol do Renato Gaúcho, de barriga. Voltou para casa disposto a acabar, de uma vez por todas, com aquela angústia. Não deu uma palavra no caminho e ainda fez uma maldade: tirou o boné para que a chuva, que ameaçava cair, carregasse Alzira para bem longe. Mas não choveu. No ponto do ônibus, ela arriscou um palpite infeliz:– Liga não, bobo. Ano que vem o Mengão dá o troco. Em casa, mal fechou a porta foi direto ao assunto, para não correr o risco de fraquejar: – Precisamos ter uma conversinha séria, minha querida. – Sou toda ouvidos. Seus, é claro. – Alzira, eu gostaria que você se mudasse. – Como assim? – Pega os seus pertences e dá o fora! Sentiu a cócega do silêncio e logo depois uma gotinha morna escorrendo pelo pescoço. Ele também chorou, pois sempre detestara separações. Ainda ouviu a praga, entre soluços:– Outra virá. Os neuróticos não conseguem viver sem uma pulga atrás da orelha. Ontem, quando começou a coceirinha, pensou logo em Alzira. Mas era outra, de quem ainda não sabe nem mesmo o nome.