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Rivânia e os livros


Esse triste episódio será mais do que explorado em noticiário e comoverá redes sociais. Quem sabe Rivânia ganhe uma bolsa de estudos para um colégio particular, quem sabe a família receba uma casa num país de precariedades despejadas sobre a maioria da população, que desconhece os próprios direitos? 

Rivânia ainda é muito jovem para ler Uma vez (Paz &Terra, R$ 27,90), uma novela sobre a resistência à realidade de violência que a Segunda Guerra Mundial trouxe a tantos jovens judeus. Felix, um menino de dez anos, é recolhido a um orfanato católico como outras crianças de origem judaica. Acredita que os nazistas perseguem seus pais porque eles são livreiros. Quando soldados entram no orfanato para queimar livros, ele foge e começa sua saga à procura da livraria onde sempre viveu, de pais que provavelmente morreram, da proteção que poucos adultos oferecem a crianças sem família, no Gueto de Varsóvia. Para o britânico Morris Gleitzman, de origem judaica polonesa, a história de Felix resgata o heroísmo de pessoas como o médico polonês Janusz Korczak, assassinado pelos nazistas ao lado das 200 crianças judias do orfanato que dirigiu, em 1942. Gleitzman, radicado na Austrália, onde publicou mais de 30 obras para o público infanto-juvenil, tem colecionado prêmios literários por esta história que comove leitores de todas as faixas etárias.

Distante dos horrores de uma infância de penúria, Marina Abramovic cresceu na Ioguslávia do pós-guerra, filha de dois heróis da resistência antinazista, o que lhe garantiu conforto material raro nos países da Cortina de Ferro. O casamento dos pais, no entanto, reproduzia um ambiente de permanente guerra doméstica. Além do costume de manterem armas de fogo (carregadas) nas mesas de cabeceira que ladeavam a cama do casal, brigavam violentamente. A mãe, diretora do Museu da Revolução, era culta, refinada e extremamente severa, disciplinando a filha com surras sem grandes explicações sobre os castigos. O pai, militar, avesso ao requinte intelectual, mulherengo e charmoso, sempre foi carinhoso com os filhos. Eu sua autobiografia - Pelas paredes (José Olympio, R$ 69,90) - , Marina destaca a presença frequente de sua família nas lembranças de sua trajetória como artista performática, que rompeu com um doutrinamento comportamental sufocante através da arte – sua válvula de escape e principal interesse da mãe, que a estimulava a ler e a conhecer toda a forma de expressão.

A opressão do Estado se imiscui nas memórias de Marina, que se considera uma privilegiada por jamais ter sido obrigada, na juventude, a lavar a própria roupa, arrumar ou limpar a casa, nem preparar suas refeições. Ao usar o corpo como espaço de sua própria arte, ela desconstrói os anos de obediência cega a uma ordem inquestionável. A mesma que o personagem de Morris Gleitzman não compreende. A mesma que Rivânia desconhece, por enquanto, e que dificilmente conseguirá contestar no país da precariedade.