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Sobre a vida real e os dilemas do imaginário


A expectativa de boas vendas viria na contramão da crise, caso o mercado do livro não demonstrasse que, pelo menos na indústria do livro, os números estão pra lá de positivos. Em agosto, os vinte primeiros títulos da lista geral de livros mais vendidos no País corresponderam a 257.266 exemplares comercializados. Em setembro, chegaram a 339.694, ou seja, mais de 30% a mais em vendas – que contaram com o auxílio das promoções da Bienal do Livro. 

Os títulos mais cobiçados continuam sendo os que agradam em cheio ao público menos sofisticado – romances água com açúcar, autoajuda bem-humorada e o erotismo de duvidosa qualidade literária imortalizado por E.L. James em Grey (Intrínseca, R$ 39,90). Em setembro, o livro mais vendido foi o Muito mais que 5inco minutos (Paralela, R$ 24,90), da youtuber Kéfera Buchman, que faz graça e campanha contra bullying, além de falar sobre aspectos de sua vida – aliás, o tema de suas aparições na Web. Kéfera já teve 12 milhões de visualizações na Internet e vendeu, em setembro, mais de 65 mil exemplares. No segundo lugar veio Grey, com “apenas” 32.727 exemplares. 

Há cerca de cinco anos, tudo quanto era editora arranjava um padre para chamar de seu. Aparentemente, as editoras projetam uma nova onda de religiosidade, desta vez enfocando os caminhos escolhidos pelos sacerdotes numa era mais dedicada ao prazer do que aos sacrifícios da alma. 

E é sobre almas atormentadas que fala a sombria versão de João e Maria (Intrínseca, R$ 34,90), de Neil Gaiman, com ilustrações de Lorenzo Mattotti. Não que Gaiman tivesse que acrescentar detalhes sinistros a uma narrativa que já nasceu apavorante, na Idade Média, sendo imortalizada, no início do século XIX pelos Irmãos Grimm, uma dupla que jamais aliviou cenas sangrentas ou textos lúgubres. Hoje, a história do casal de irmãos que é abandonado pelos pais, muito pobres, numa floresta, jamais seria indicada a pequenos leitores. Sem encontrar o caminho de casa, as crianças acabam sequestradas por uma bruxa que pretende fazer deles seu alimento. Falar diretamente sobre o temor da rejeição infantil, a superação pelo sofrimento e o início do amadurecimento não é recomendado nem pelo psicólogo Bruno Bettelheim, que nos anos 1970 lançou o clássico A psicanálise dos contos de fada (Paz & Terra, R$ 60), em que desvenda as lições de moral por trás das histórias populares. Para Bettelheim, as crianças deviam ouvir os contos de fadas sem analisar tudo o que eles representam. 

Não faltam também referências da cultura contemporânea e dilemas nascidos na mente para os personagens dos doze contos reunidos em  Enquanto nossos meninos dormem (Oito e Meio, R$ 35), de Renato Lemos. Situadas no Rio de Janeiro, as breves histórias deixam um gosto de “quero mais” no leitor. Situações limitantes ou limitadoras surgem nas vidas desses personagens parecidíssimos com gente real, numa cidade inquietante e envolvente como boa parte dos amores descritos pelo escritor.