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Sobre a alma feminina, o patriarcalismo em crise e romance


De fato, ainda que não de direito, 2023 começa, no Brasil, na segunda-feira 27 de fevereiro. Depois, teremos outro recomeço pós-Páscoa e, dependendo do número de feriadões, diversos, assim que cada um deles terminar. Renovamos o ano ao longo desses 365 dias, talvez pelo júbilo que reinícios imprimem na alma. Para retomar 2023, algumas leituras, nem sempre de lançamentos, podem ajudar a refletir sobre temas atualíssimos – a violência, o feminismo e os tabus, discutidos por mulheres.


Caderno Proibido (Companhia das Letras, R$ 67,92), de Alba de Céspedes, é daqueles livros que se folheia e deixa de lado para “ler com calma”. No Carnaval, surgiu o momento certo de compreender a mente de uma italiana dos anos 1950, angustiada com as ideias feministas defendidas pela filha e que ela mesma pratica sem perceber, dando expediente em escritório para ajudar o sustento da família. Católica, Valeria tem uma visão peculiar sobre a libido: “pecou” antes de se casar com o marido, Michele, mais de vinte anos antes, fomenta um caso romântico com o patrão, porém gostaria que a filha se mantivesse casta. Ama sinceramente o marido, reconhece uma nítida afinidade com o filho, não suporta a futura nora, grávida do primeiro neto. Tampouco se sente confortável ao ser chamada de “Mamãe” por Michele. Compra o caderno num domingo, quando a venda é proibida por lei, e nele divaga, às escondidas da família, a respeito de seus anseios, mas principalmente da culpa por se descuidar das tarefas domésticas e da invisibilidade sexual aos 43 anos, numa época em que a vida adulta era definida precocemente.


Publicado inicialmente em fascículos, Caderno proibido discute dilemas contemporâneos do universo feminino, assolado por temores que ainda persistem — a possibilidade de uma guerra mundial, o risco da perda de reputação da filha que namora um homem separado, a descoberta de uma vida interior além do cumprimento de deveres. O caderno só surge para a protagonista quando ela desempenha uma de suas obrigações, comprar cigarros para o marido. O tabaco era comercializado em qualquer dia, mas outros produtos, que podem trazer autodescoberta, só em datas comerciais. Cigarros que também se esvaem em fumaça, como o caderno que Valéria pretende queimar, eliminando os vestígios de tudo o que viveu e sentiu em seis meses de diário, permanecendo “no ar penas um leve cheiro de queimado”.


Para ler “com calma” também está A casa do pai (Instante, R$ 64,90), pelo qual Karmele Jaio recebeu, em 2020, o Prêmio Euskadi de Literatura, maior entre as premiações literárias bascas. O desencontro da família de um escritor, Ismael, preocupado com seus lapsos de consciência e sinais da decadência física da velhice, revela a insegurança do envelhecer, ampliada em face das modificações políticas e sociais. O fim da luta pela independência dos bascos, o atordoamento diante da repulsa ao patriarcado machista, com o qual jamais se identificou, mas no qual é incluído, apenas por ser homem, a falta de inspiração para escrever: tudo se entrelaça nas dúvidas paralisantes do protagonista. A trama se desenvolve, no entanto, com três frentes de narrativa: em primeira pessoa, só a de Jasone, casada com Ismael. O texto segue ainda o escritor e sua irmã, Libe, que traçam a história por seus pontos de vista, lembrando o tempo de formação, na infância e juventude, e a convivência com o pai, moldado pelo patriarcado.


A pressa do dia a dia recomenda duas leituras mais profundas do que inicialmente parecem. Nada fica no passado (Faro Editorial, R$ 54,90), da canadense Jennifer Hillier, é quase um roteiro de thriller de TV. A prisão de um serial killer  quinze anos depois de cometer o primeiro assassinato leva à condenação como cúmplice pelo mesmo crime de sua ex-namorada, uma executiva bem-sucedida. Cumprida a pena, ela se junta a outro amigo da juventude, agora policial, para buscar pistas que apontem os motivos para os homicídios. Personagens multifacetados em cenários realistas compõem um suspense psicológico primoroso, especialidade da escritora. Fama, riqueza e insatisfação caminham lado a lado das personagens de Oito vestidos Dior (Intrínseca, R$ 59,90), da inglesa Jade Beer. Uma jovem vai a Paris com a incumbência de resgatar um vestido que pertenceu à avó, um ‘Maxim’s’, peça em veludo criada por Christian Dior para ser usada em coquetéis. Através desse e de outras peças de Dior, a protagonista descobre uma história romântica secreta e um novo olhar sobre o papel feminino numa sociedade conservadora.