UM VELÓRIO DE REI
Quis assistir ao velório de Pelé para poder registrar a nota que se segue, já há dias distante do consternamento inicial de sua morte.
De fato, a história há de testemunhar a excepcionalidade da multidão que desfilou por 24 horas ante seu caixão no centro do campo de futebol do Santos (em Vila Belmiro). Terá sido talvez a maior despedida vista no país. Tanto quanto as que presenciei, bem mais extensa que as massas populares que seguiram o translado de Carmem Miranda e Francisco Alves (para o São João Batista) ou de Getúlio e J.K. (para o aeroporto de Santos Dumont), ou ainda a de Ayrton Senna pelas ruas de São Paulo. Ou mesmo o velório de Tom Jobim no Jardim Botânico do Rio.
Justíssima e eloquente homenagem do povo deste país ao seu cidadão mais popular no mundo inteiro, de reconhecimento imediato por todas as classes em qualquer país do planeta.
Pelé gravou histórico depoimento a meu lado (de quase cinco horas de duração) no Museu da Imagem e do Som em 1968, logo depois da celebração de seu triunfal milésimo gol. Terá sido o mais disputado testemunho do MIS para a posteridade presenciado que foi por um impressionante batalhão de fotógrafos/jornalistas da imprensa internacional e do país inteiro.
Ainda há pouco recebi comunicado da Universidade de Essex, para qual o MIS então remetia seus depoimentos: “o depoimento histórico do Rei do Futebol no Museu teria sido ouvido agora em Londres por solicitação da imprensa do Rei Charles”.
Devo registrar ao fazer um preito de saudade a Pelé o quanto me encantaram a simplicidade e os finíssimos modos - tão apropriados a um rei de verdade - ao convivermos por horas a fio numa mesa apertada e cercados pelo incômodo das centenas de flashes a cada segundo. Ele pediu água pela primeira e segunda vez, quando solicitou pela terceira e quarta vez, disse ao meu ouvido – “Me desculpe que eu seja um convidado tão “pidão”. Mas em geral meu costume é usar muito mais as pernas do que a voz. Que começa a falhar...”. Puxou-me e fez o jeito de um abraço risonho.
Pelé se despediu doando seus direitos diretamente ao Museu da Imagem e do Som para fazer um LP de seu depoimento. E com esse gesto nobre pôde ajudar o MIS a sobreviver.
Saudades, meu Rei. Deus o tenha, como os corações do Brasil te preservarão para sempre.
Ricardo Cravo Albin