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Uma voz, um violão e mil percussões


Por Tapajós abro um parêntese: em meio à sua batalha incansável pela música e pelos músicos, se foi Maurício, grande compositor (“Mudando de Conversa”, com Hermínio Bello de Carvalho; “Tô Voltando” e “Pesadelo”, com Paulo César Pinheiro); diretor de shows (Transversal do Tempo, de Elis Regina); militante e líder destacado nas lutas pelos direitos autorais e trabalhistas (diretor do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro e presidente da AMAR – Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes), e produtor de talentos que a indústria não ouvia. Saudoso, fecho o parêntese.Relançado pela Biscoito Fino, A Modernidade da Tradição é um cantor, um violonista, um percussionista e suas sonoridades. Marcos Sacramento é um intérprete diferenciado. Sua afinação tem suingue; sua respiração se integra às divisões rítmicas, sempre de muito bom-gosto; seu vibrato, usado com parcimônia e sabedoria, acentua a emoção sempre presente em cada frase que canta. Cantor!Marcos Suzano é a mais que perfeita tradução do instrumentista moderno. Vale-se das percussões tradicionais para criar instigantes modernidades e intensos batuques. Seu pandeiro se faz de bateria. Em suas mãos a moringa ecoa feito bombo. De sua caixa de guerra vem o rufo que brada e a todos reúne. O triângulo se refaz em mil sons geometricamente opostos a tudo o que é quadrado. Do berimbau vem o toque que, somado ao tantã, dá sabor brasileiro à alma negra do ritmo. Maurício Carrilho continua como diretor musical do álbum e criador dos arranjos cujas harmonias têm o que o CD traz no título, tradição e modernidade, e se vale de seu vasto violão para enriquecer o que Sacramento canta. Cada uma das seis cordas se une sob os dedos ágeis do instrumentista para criar acordes que tanto podem ser os originalmente criados pelos compositores, como podem ser por ele invertidos e refeitos ao sabor de sua criatividade.O repertório é marca forte no CD. Tem a cara de quem conhece música brasileira e com ela tem intimidade. A escolha de sambas pouco conhecidos de Noel Rosa (“Pela Décima Vez”), Paulinho da Viola e Sérgio Natureza (“Vela no Breu”), Wilson Batista e Marino Pinto (“Largo da Lapa”) e Nelson Cavaquinho e Guilherme Brito (“Mulher Sem Alma”); de músicas às quais ainda não foi dada a devida atenção, “A Volta do Malandro” (Chico Buarque) e “Genipapo Absoluto” (Caetano Veloso); ou dos clássicos “Meu Moreno Fez Bobagem” (Assis Valente), “Canto das Três Raças” (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) e “Lábios Que Beijei” (J. Cascata e Leonel Azevedo) o confirma.Impressiona como Sacramento canta “Canto das Três Raças”, imortalizado por Clara Nunes. O arranjo de Carrilho é simples e genial. Entra a percussão de Suzano, só pandeiro e moringa. O violão dedilha o canto criado por Paulo Pinheiro. Sacramento vai até este primeiro canto. O violão está vibrante como pede a exaltação. A caixa de guerra rufa e vêm as mil mãos de Suzano batendo delicada e emocionadamente em tudo o que sai som e está ao seu alcance. A voz dobrada no grave leva o canto ao final. Emoção! Outra: só a voz e o violão são mais do que suficientes para arrancar algumas abestalhadas lágrimas de quem ouve Sacramento cantar os versos doloridos que Guilherme Brito criou para a triste melodia de Nelson Cavaquinho. E outra ainda: o violão marca. O pandeiro bate. A voz entoa a genialidade de “Vela no Breu”.Cantor cuja personalidade evidencia que tudo o que canta vem à luz com significado e alma, Marcos Sacramento é o que diz Caetano ao encerrar “Genipapo Absoluto”: “Pois minha mãe é minha voz/ Como será que isso era/ Este som/ Que hoje sim/ Gera sóis dói em dós”.Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4