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Uma voz bonita de fazer sangrar o coração


O poeta Hermínio Bello de Carvalho, um de nossos mais inquietos e inspirados produtores, determinado como poucos, faz hoje com Áurea Martins, a nossa grande dama dos dissabores, o que já fez com Clementina de Jesus e Zezé Gonzaga (saudades!): pega-a pela mão e leva-a ao público. Desta vez o poeta convidou Zé-Maria Rocha, o pianista do Terra Trio, para produzir o álbum com o qual quis retratar o universo musical de uma das grandes cantoras brasileiras, embora poucos dela tenham ouvido o cantar. Responsáveis os dois pela seleção do repertório, a grande força de Até Sangrar, buscaram o que de melhor se conhece de Lupicínio Rodrigues ("Não Sou de Reclamar", "Há Um Deus", "Migalhas", "Um Favor" e "Volta"); Johnny Alf ("Ilusão à Toa"); Herivelto Martins e David Nasser ("Pensando em Ti"); Ary Barroso ("Ocultei"); Luís Reis e Haroldo Barbosa ("Moeda Quebrada"); Newton Martins e David Nasser ("Até o Amargo Fim"); Herivelto Martins ("Edredom Vermelho"); Jaime Florence e Augusto Mesquita ("Molambo"); Tom e Vinícius ("Janelas Abertas"); Custódio Mesquita e Evaldo Rui ("Noturno - Em Tempo de Samba"); Chocolate e Américo Seixas ("Vida de Bailarina"); Francis Hime e Vinícius de Moraes ("Sem Mais Adeus"); Carlos Lyra e Vinícius ("Valsa Dueto"), e Francis Hime e Chico Buarque ("Embarcação"). Além de Paula Toller e Herbert Vianna ("Nada Por Mim"); Ulisses de Oliveira ("Baralho da Vida"), e João Donato e Lysias Ênio ("Até Quem Sabe"). Músicas tocadas exemplarmente por grandes instrumentistas convocados para dar à Áurea a chance de voltar a brilhar.Com estes musicões cantados por Áurea Martins, só poderia mesmo sair um discaço! E é isso que é Até Sangrar, um baita disco. Antológico! Todas são canções exacerbadas, carregadas de dores lancinantes e de ciúmes patéticos, cujos versos que melhor os exemplificam estão em "Ocultei", de Lupicínio: "O meu mais ardente desejo/ Que Deus me perdoe o pecado/ É que outra mulher a teu lado/ Te mate na hora de um beijo (...)". Meu Deus! Cantora com dicção perfeita, o que a afinação só faz tornar ainda melhor, seus graves e agudos, principalmente os primeiros, soam como parceiros íntimos de uma garganta de onde brota uma voz sensual que a meia-luz dos ambientes enfumaçados ressalta. Áurea Martins é crooner de boate, e Zé-Maria costuma acompanhá-la na noite - por isso mesmo o piano é o instrumento destacado nos arranjos. Algumas faixas trazem músicas agrupadas em duplas ou em quartetos; outras mostram simplesmente apenas uma. Onze arranjos foram escritos pelo Terra Trio, grupo integrado por Zé-Maria no piano, Fernando Costa no contrabaixo e Ricardo Costa na bateria. Alberto Chimelli e Cristóvão Bastos escreveram dois arranjos, e João de Aquino, João Donato e Francis Hime, um cada um. O CD tem participação especial de Alcione, Emílio Santiago, João Donato e João de Aquino. A este último, tocando violão e fazendo os vocais na introdução, coube um dos melhores momentos de Até Sangrar. Arranjo primoroso! João Donato toca piano, canta e só falta fazer chover na sua "Até Quem Sabe". Outra emocionante atuação teve Alcione. Parecendo incorporar o espírito de Áurea, a Marrom dá um banho de interpretação em "Vida de Bailarina". Show que também dá Emílio Santiago em "Valsa Dueto", numa dupla afinada com Áurea Martins, a dona do espetáculo, quando são acompanhados apenas pelo piano (olha ele aí novamente) de Zé-Maria. Juntas, todas as Áureas Martins (e elas são tantas) estão prontas para serem ouvidas/consumidas em pequenos goles num cálice de fino cristal. Juntem-nas todas e teremos por inteiro uma dama negra saboreando a dor e nelas serenizando.Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4