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A vida às escondidas


Rosa Montero ficou conhecida no Brasil ao vir lançar A louca da casa* na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2004. A partir de então, tornou-se figurinha fácil nas listas brasileiras de livros mais vendidos, com preciosidades como o ensaio A ridícula ideia de nunca mais te ver (Todavia, R$ 42,26) e o belíssimo romance A boa sorte (Todavia, R$ 40,41), este, totalmente visual, quase um roteiro pronto para o cinema. Com um protagonista que faz o que todos gostariam – largar tudo, sumir no mundo, redesenhar a própria história –, Rosa Montero traça um duro, mas esperançoso retrato do mundo contemporâneo.


A única diferença do ‘chutar o balde’ de Pablo, um profissional extremamente bem-sucedido e rico, para o que se delineia na maioria dos sonhos de abandonar as dificuldades cotidianas a fim de reinventar a vida, é que ele escolhe um lugarejo sem qualquer atrativo como refúgio. Naquele fim de mundo, compra um apartamento em frente à linha do trem e vai trabalhar como repositor de supermercado. Seus fantasmas são revelados aos poucos, enquanto faz amizade com uma jovem vizinha estrangeira, que também carrega um passado doloroso, sem, no entanto, perder o entusiasmo pela vida. Mafiosos, workaholics, pessoas privilegiadas se alternam ao longo da trama, em contraponto ao momento de puro desejo de escapar da realidade a que Pablo pode se entregar, desafiando as ultraconexões da contemporaneidade.

A transgressão desse personagem não burla qualquer tipo de legislação, mas questiona um sistema a que todos se acostumaram a integrar. Alguém que decide se isolar, ficar longe de redes sociais, fazer negócios sem usar cartões de crédito, não telefonar é confiável? É possível viver e não registrar cada um de seus passos? Quem preza a privacidade é um esquisitão ou está se escondendo da Polícia? Por que em trinta anos a tecnologia impôs um sistema de informações públicas a que tantos se submetem sem reclamar da intromissão ou da exposição da intimidade?


No mundo real, esses questionamentos também vêm se impor a quem já se conformou com o domínio e a vigilância tecnológica. Como não se impressionar com um crime que revelou estranhas relações familiares, compostas, talvez, pela intenção de montar uma farsa geradora de dividendos financeiros? Foi o que aconteceu a partir das investigações do assassinato do pastor Anderson do Carmo, marido da deputada federal Flordelis dos Santos Souza, em 2019. Suspeita do crime, a pastora evangélica e cantora gospel, famosa por suas pregações e fundar sua própria igreja, tinha, sob sua responsabilidade 55 crianças e jovens, entre filhos biológicos e acolhidos. Um desses agregados era Anderson, que, resgatado do tráfico de drogas, teria, inicialmente, namorado uma das filhas de Flordelis, antes de se casar com a mãe.


Os pouco convencionais arranjos afetivos de Flordelis e o processo a que responde estão em O plano Flordelis (Intrínseca, R$ 69,90), da jornalista Vera Araújo, que reconstitui a trajetória da complexa personagem. Nada é simples nesse enredo, sequer o crime. A origem humilde da parlamentar, seu talento e a ascensão socioeconômica justificariam o homicídio e tantos outros pequenos delitos –– assumir a criação de menores sem adotá-los legalmente, por exemplo — ou seriam apenas exercícios de sobrevivência em ambientes que protegem os bem-nascidos, reservando papéis subservientes aos menos favorecidos? Como na ficção de Rosa Montero, esse thriller da vida real deixa as conclusões a cargo de cada leitor.


*Minha antiga edição da Louca da Casa está coberta de bolor, uma característica quase determinante de livros com mais de vinte anos de vida. Fui tentar adquirir uma nova e descobri que o título está esgotado. Há apenas exemplares antigos, à venda, no mínimo, por R$ 200, em sebos. Momento bom para uma reedição, não, editoras brasileiras?