Loading...

VIDACRÔNICA


Mãos


As mãos de minha avó tinham veias azuis em alto relevo, córregos entre couro e osso, cobras inflamadas nos desvios das rugas. Eu percorria lentamente a ponta do dedo sobre a elevação inchada nas mãos murchas de minha avó, e pedia a Deus para que as mãos de minha mãe jamais ficassem assim.


As mãos de minha mãe também se tornaram azuis, com os barbantes mergulhados na pele murcha que ficou seca e cheia de manchas escuras. Os meus dedos faziam carinho, evitando o contato das unhas, achando que de uma hora para outra poderiam rasgar a película e o jato azul inundar tudo. Pensando que minhas mãos, minhas lindas mãos, jamais teriam aquele desenho.


Agora percorro com os dedos da mão esquerda fio por fio as costas da mão direita, invertendo depois a ordem do movimento, revendo em meu corpo de mãos murchas e manchadas os córregos de minha avó, sentindo novamente o temor de que explodissem no céu as nuvens em cordas das mãos de minha mãe. Olho as mãos jovens e saudáveis do meu filho e penso que a vida – com seu corolário manuscrito de mistérios – não passa de um eterno esperar pelos sinais que as mãos nos reservam.


Passear de mãos dadas. Quietar de mãos dadas. De mãos dadas apreciar o mar, o céu, o vento, o voo dos urubus (até urubu é bonito quando estamos de mãos dadas). Mãos dadas com um amor, uma esperança, um sonho, um ideal. Mãos dadas no meio da noite. De mãos dadas, acordar para dar a mão à palmatória e segurar as cordas do mundo. Mãos dadas porque um ano se acaba, porque outro começa, a montanha treme, o caminhão se desgoverna, o vírus terrível se aproxima.


Mãos dadas especialmente no que não é bom; abraçamos a árvore, mas também o pedregulho.


“O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, pedem os versos de Drummond (o que tinha apenas “duas mãos e o sentimento do mundo”), a nos guiar.


“A mão que afaga é a mesma que apedreja”, pragueja Augusto dos Anjos, ensinando que entre o aplauso e a vaia há os dois lados da moeda. As mãos de Eurídice levaram o amante à ruína pelas mãos de Pedro Bloch. Ah, essas mãozinhas tentadoras e relaxantes dos amantes.


Que “na hora da morte haja uma mão humana amada para apertar a minha”, pedia Clarice, com as mãos e os olhos mergulhados em seus mistérios.


Com a mão, também, todo cuidado é pouco! Dom Hélder recomendou que ela nos ajudasse no voo, “mas que jamais se atreva a tomar o lugar das asas”. A mão é músculo, é boba, é sonsa e sabida. A mão que traz a comida decide quem se aproxima.


A mão e o coração não fazem apenas uma rima.