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Violões sem preconceito


Exageros à parte, esta "verdade", não raro, pode comprometer a atuação de dois músicos tocando instrumentos iguais, por mais virtuosos que sejam.

Dito isto, vamos ao álbum Galope (Borandá), dos violonistas Chico Saraiva e Daniel Muray, que tocam oito belos temas de Saraiva, além de um de Guinga ("Di Menor") e outro de Heitor Villa-Lobos ("Veleiros").

Mas pensemos juntos, atenta leitora e paciente leitor, estaríamos nós na iminência de presenciarmos "dois porcos-espinhos fazendo amor"?

Pois bem, vem a primeira faixa, a terceira, aquarta, a quinta e a décima e última... E os violões não se espetaram, muito menos se machucaram, ao contrário, amaram-se como se não houvesse amanhã, tocando-se e vibrando em prazerosa harmonia.

Ora, vamos com calma, direis. Sim, para tanto, vamos ao dicionário: "violão (1615) s.m (...)" Não resta dúvida, "violão" é um substantivo masculino (o grifo é meu). Sim! Sem dúvida! Mas que os violões que estão nas mão de Saraiva e Murray não têm o menor preconceito, lá isso também é verdade. E digo mais: dois machos que tocam juntos como fariam Romeu e Julieta  caso tocassem violão ou mesmo piano.

Uma hora o som de um está por cima e o do outro, por baixo. Sem que percebamos o fluxo, eles invertem a posição e seguem como que apaixonados um pelo outro. Eles mesmos despidos de prevenção, os violonistas dão corda para a relação amorosa de seus instrumentos:

"Galope" (Chico Saraiva), um usa a palma da mão para criar um som percussivo, o outro dedilha as cordas suavemente.

"Coco" (CS), a todo e qualquer tipo de levada, os dedos cumprem o papel de quem está apto a qualquer dança, a qualquer ritmo ou gênero.

"Ágatha" (CS), enquanto um se adianta, manuseando as cordas com delicada ligeireza, o outro, em compasso de espera, aguarda até que retomem a mesma frequência.

"Martelo" (CS), lado a lado se roçam em busca da harmonia que lhes convenha. Em uníssono, acendem o fogo que só em duo é possível.

"Saraivada" (CS), em intensos movimentos, embolam-se, embaralham as mãos e os dedos por sobre os corpos dos violões.

Nesta fúria criativa, de tão intensamente ligados, impossível saber quem é um e quem é o outro. Ao final da audição, resta uma convicção: acabamos de ouvir dois violonistas que se ajuntaram para criar belezas a partir de seus instrumentos. Os dois, absolutamente sem preconceitos, inteiramente abertos à arte de gerar belezas através da música que brota de seus violões.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4