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O INÍCIO DA PRODUÇÃO MUSICAL (IN) DEPENDENTE NO BRASIL


A renovação de uma manifestação artística em um país, seja nas artes plásticas, cinema, teatro, literatura ou música, ocorre quase sempre a passos muito sutis e suaves, somente percebidos anos depois quando há certa distância do objeto de estudo. Com a volta do disco independente em 1977 com o lançamento do disco “Feito em Casa”, de Antônio Adolfo, houve uma retomada deste tipo de produção. Quando digo “retomada”, refiro-me que tal experiência já fora experimentada nas décadas de 1920, 1940 e 1950 com os chamados discos de “Edição do autor”, produzidos às próprias expensas dos compositores.


Na verdade, um dos primeiros trabalhos independentes que temos notícia foi feito pelo poeta, letrista, cantor e produtor paulista Cornélio Pires (1884 Tietê/1958 SP). Segundo o pesquisador Paulo Luna in “Dos braços dessa viola à dissonância de uma guitarra: A tensão entre tradição e modernidade na música caipira e sertaneja” (Dissertação de Mestrado, UERJ, 2005), em 1928 o primeiro “showman” brasileiro apresentou à gravadora Columbia o projeto de gravação de discos caipiras, que foi rejeitado. Pagou do próprio bolso a produção de uma série especial de 25.000 exemplares, vendidas apenas no caminho da cidade de Jaú. Os discos estavam divididos em cinco séries: humorística, folclórica, regional, serenatas e patriótica. Os primeiros foram lançados em maio de 1929 e com ele mesmo cantando. Editou folhetos para divulgar seus shows e os discos eram vendidos na porta de teatros e circos.


Outro exemplo, destes primórdios da produção independente no Brasil, foram as 35 cópias do disco (em acetato) com a valsa “Está chegando a hora”, interpretada por Carmen Costa. Lançado em 1942, a própria cantora pagou as cópias dessa versão em português da música mexicana “Cielito lindo”, feita pela dupla Henricão e Rubens Campos. Em pouco mais de um mês a cantora entrou definitivamente para a história do carnaval e da MPB.


Em 1958 o compositor mineiro Pacífico Mascarenhas pagou, produziu e lançou o LP “Um passeio musical”.


Em 1972 foi lançada a série “Disco de Bolso”, encartada no jornal O Pasquim. O compacto simples trazia de um lado Tom Jobim interpretando “Águas de março” e do outro lado, o também estreante em disco, João Bosco interpretando “Agnus Sei”, primeira parceria com Aldir Blanc. O disco foi lançado pela Zen Produtora Cinematográfica e Edições Musicais Ltda, portanto, independente com relação às grandes gravadoras atuantes na época. No ano seguinte, em 1973, no Recife, Lula Côrtes e Lailson lançaram, de forma independente, o LP “Satwa”. Neste mesmo ano, ainda na cidade de Recife, Marconi Notaro lançou o LP “Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários”, disco que contou com a participação especial do guitarrista Robertinho do Recife e ainda de Zé Ramalho, sendo este o primeiro registro da voz do cantador.


No ano de 1975 Lula Côrtes e Zé Ramalho lançaram, pela fábrica e gravadora Rozenblit, o LP duplo “Paêbiru – O caminho da montanha do sol”, para o qual, reza a lenda, foram feitas somente 200 cópias, portanto, considerado independente.


Porém, o boom do disco independente começou ainda na década de 1970 com os pioneiros Antonio Adolfo (“Feito em Casa” 1977), Tharcisio Rocha, Chico Mário, este último um dos fundadores da APID (Associação dos Produtores Independentes de Discos) que em seis meses contava com 600 associados. Outra fomentadora deste tipo de produção foi a COOMUSA, cooperativa que lançou discos de Claudio Latini, Tharcisio Rocha, Maurício Tapajós e Márcio Proença, entre outros.


Em 1979 esse movimento de disco independente teve seu auge, pelo menos em termos de vendagem. O grupo Boca Livre (Cláudio Nucci, Zé Renato, David Tygel e Maurício Maestro) obteve grande sucesso de vendas com seu primeiro LP.


Nas últimas décadas do século XX a música brasileira passou por uma total renovação, dado a fatores diversos. O disco independente foi um dos principais destes fatores. Isto, em decorrência dos baixos custos de informática e socialização dos meios de produção do CD. Com isso, surgiram pequenos selos e pequenas gravadoras que aglutinaram boa parcela dessa produção independente. Com os custos de produção fonográfica relativamente baixos, os selos se espalharam por todo Brasil e os discos foram surgindo, inclusive fora do eixo Rio-São Paulo, como é o caso do disco “Caruá”, de Zé da Flauta e Paulo Rafael, lançado em Recife no ano de 1980.


No inicio da década de 1980 surgiu em Niterói o selo independente Gente Nossa, idealizado pelo letrista e produtor Bira de Oliveira. Por esse selo, cooperativado, foram lançados vários compactos simples e LPs, entre os quais os de Danilo Braga, Bira de Oliveira e Carlos Blanco. Na década de 1990, também em Niterói, foi criado pela prefeitura da cidade, na gestão de Jorge Roberto Silveira, o selo Niterói Discos, pelo qual foram lançados cerca de 100 discos de artistas variados, entre eles os discos de Júlio São Paio (Sinfonia Batucada), Zé Netto, Almanir Grego, Paulinho Guitarra, Glória Latini, Paulo Ciranda, Arthur Maia e Cássio Tucunduva. Em plena atividade em 2008 o selo lançou o CD “Mar azul”, do baixista Luiz Alves.


Entre as centenas e centenas de selos que existem, alguns congregaram artistas de determinadas tendências, partindo assim para uma pequena formação de pequenos movimentos (às vezes, muito dispersos), contudo constituindo e demonstrando uma identidade musical comum a todos que deste ou aquele selo e/ou pequena gravadora, participam e integram seu cast.


Como fechamento recorro a uma matéria publicada no jornal O Globo, Caderno B, em julho de 2007, “Acordos devem facilitar os negócios da música – Editoras de música e selos independentes reforçam parceria de olho em novos tempos”, de autoria do poeta e crítico musical Antônio Carlos Miguel, texto no qual podemos perceber os novos tempos da música brasileira em relação à produção e à divulgação do produto. Mais uma vez as grandes gravadoras (com suas editoras) tentam se adequar à realidade, assim como aconteceu nos Estados Unidos décadas antes.


Segundo Antônio Carlos Miguel


“As principais editoras de música e a associação das gravadoras independentes assinaram parceria que deverá fortalecer o mercado fonográfico e atesta o crescimento da produção independente. Apesar da crise do disco, hoje, os produtores filiados à Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), com 132 membros, já respondem por boa parte da música brasileira aqui gravada. Enquanto isso, os 18 associados da até então poderosa Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), incluindo as multinacionais EMI, Sony BMG, Universal e Warner, teriam diminuído em 60% o seu investimento, trocando novos discos brasileiros por lançamentos internacionais ou reedição de seu acervo...”


De qualquer maneira, vários artistas têm procurado saídas diferentes para seus produtos, muitos deles fundando seu próprio selo, pelo qual grava e lança seus discos e usando as grandes gravadoras somente para distribuição. Caso como o Lulu Santos no novo disco de 2007 “Longplay”, gravado de forma independente e distribuído pela gravadora Som Livre, ou ainda Maria Bethânia com seu selo Quitanda, atrelado à distribuição da gravadora Biscoito Fino. Djavan com seu selo e editora Luanda Records e Elba Ramalho com o selo Ramax, criado em 2001 e distribuído pela gravadora BMG, entre muitos outros artistas que criaram seu próprio selo e que usam o suporte administrativo das grandes gravadoras apenas para distribuição, assim como acontece em outros países.


Na verdade, o nome deste tipo de produção não deveria ser “Independente” e sim, “Depende”, pois depende somente do artista, que dali em diante assume a persona de provedor do seu próprio trabalho. Independente, a meu ver, são os disco feitos por gravadoras, trabalhos que o artista, na maioria das vezes, nem tem voz ativa na produção, escolhas das composições e músicos que irão atuar, sendo assim, o disco geralmente fica um monstrinho, bem a cara da mãe (a gravadora), vindo a reforçar somente a cultura do entretenimento e nunca a arte-musical de um povo, como se referiu Paulo César Pinheiro no início deste texto.


No ensaio “A nova geração da MPB no século XXI” tracei um pequeno painel dessa geração mais recente, além das táticas de guerrilha cultural empreendidas como estratégia na luta, desigual, contra as grandes corporações que detêm esse mercado. Há uma luz no fim do túnel e não é um trem bala na contramão, como muitos queriam que fosse. O disco e toda a produção em home studio é hoje em dia responsável por quase 80% da prensagem de CD/DVD/SMD e Blu-Ray, entre outras mídias, das grandes indústrias do ramo. A internet e todos os sites de relacionamento e disponibilização de áudio e vídeo vieram pra pulverizar essa distribuição artística, dando mais chances a esses artistas de exporem seus produtos. Com relação à produção, temos hoje as plataformas colaborativas de financiamentos de discos, show e clipes, os chamados “Crowdfunding” (conhecida antigamente como ‘vaquinha’) destacando-se, no Brasil, os sites “catarse.me”, o “movere.me”, “benfeitoria.com”, “sibite.com.br” e o “multidao.com”. Esse tipo de mecenato, pós-moderno, surgiu para o artista ter a opção de mais uma porta para desenvolver seu trabalho, livre das chicotadas das grandes corporações, as mainstreans do entretenimento. Às grandes corporações só restaram rever seu nefasto comportamento de mais de 120 anos, se contarmos a partir de 1891, quando foram feitas as primeiras gravações, ainda em cilindro, no Brasil pelas mãos do theco Fred Figner.