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Mulheres e mitos


Demitida do jornal de um sindicato de trabalhadores por estar grávida, em 1952, a jornalista Betty Friedan sentiu na pele a rejeição do mundo do trabalho às norte-americanas de classe média. A segunda onda feminista nascia ali, pronta a derrubar “o problema que não tem nome” – a insatisfação feminina com o vazio do cotidiano de dona de casa imposto à uma geração de mulheres casadas, sem direito a qualquer vida profissional que   as afastasse das tarefas de mães e esposas. Em 1963, ela lançava A mística feminina (Rosa dos Tempos, R$ 41,90), que analisa o impacto psicológico da exclusão das mulheres da realização fora do lar.


Sair do ambiente doméstico estava praticamente vedado às mulheres no início dos anos 1960. Pronto o livro, Betty resolveu voltar à universidade para obter seu Ph.D. Levou uma cópia da pesquisa, a documentação de graduação e do mestrado obtido vinte anos antes e um relatório sobre um projeto educacional que havia implantado e dirigido, encontrou-se com o chefe do departamento de Psicologia Social de Columbia. “Ele foi tolerante e gentil”, mas duvidou que a jornalista, aos 42 anos, conseguiria  acompanhar a pós-graduação, conta a autora no epílogo de A mística feminina. “(...) ele disse, “de qualquer modo, por que quer incomodar sua mente com a obtenção de um Ph.D?”


As reações ao livro, uma extensa pesquisa que virou best-seller mundo afora, obrigaram a escritora, seu marido e os filhos a deixarem a casa no subúrbio e se mudarem para o centro de Nova York. O estudo de Betty Friedan abriu mão do estilo acadêmico – ela se especializou em Psicologia, mas sempre exerceu o jornalismo – para falar de maneira acessível aos leigos sobre as donas de casa acima do peso e alcoólatras, deprimidas com o vazio de uma existência dedicada a cuidar da casa e da família. Boa parte dessas mulheres trabalhava, quando solteira, tinha cursado universidade e era pressionada socialmente a abandonar a carreira.


Alçada à liderança do movimento pela igualdade de direitos das mulheres e homens, Betty Friedan sofreu as mais inconsistentes críticas a seu trabalho, entre elas a de que sua dedicação ao feminismo era pela ausência de beleza física. Não era o momento para as “feministas mal-amadas” devolverem os insultos aos machistas, mas de incorporarem outros pleitos, como as ações afirmativas para negros e o combate ao preconceito aos homossexuais, desvalorizados socialmente do mesmo modo que as mulheres. A legalização do aborto e igualdade salarial foram garantidas por lei nos Estados Unidos. Faltava mudar a cultura. Betty Friedan apontava a imposição midiática que buscava embasamento científico nas teorias de Freud para convencer as mulheres da importância de desempenharem “tarefas que qualquer criança com mais de oito anos é capaz de fazer”, como usar uma máquina de lavar roupas. Mais de vinte anos depois, Naomi Wolf publicava O mito da beleza (Rosa dos Tempos, R$ 41,90), dissecando a doutrinação cultural machista nos anos 1980, que continuava a impor  padrões estéticos para controlar os corpos – e o comportamento - das mulheres.


As questões levantadas por Betty Friedan há quase seis décadas ainda são percebidas em quase todo o Ocidente. A nova edição brasileira do livro celebra o 77º aniversário da economista Hildete Pereira de Melo, que liderou a pesquisa sobre o impacto econômico do trabalho doméstico não remunerado no Brasil. Em 2007, o estudo identificou que as tarefas domésticas, desempenhadas predominantemente por mulheres, corresponderam a 11,2% do PIB do país no período 2001-2005. No entanto, em sua página na Internet, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelas aferições quantitativas da população, informa que as donas de casa, assim como os estudantes universitário, não podem ser consideradas desempregadas, pois “não trabalham fora”. Em 2011, o Brasil tinha 40 milhões de donas de casa em tempo integral.