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Gaetano Donizetti


Os olhinhos de Adina, sempre vivos, sempre brilhantes, falam de uma sensualidade que, por enquanto, se satisfaz nesse simples ser desejada por todos. Acho que Belcore, o tenente falastrão, vaidoso, oferecido, que com ela logo quer se casar, é o caminho para Nemorino ter uma oportunidade. Ela diz claramente a Nemorino: “me esquece”, mas quando aparentemente, e só aparentemente, ele se afasta um pouco, inebriado, bêbado, na verdade, com o elixir de Dulcamara, elixir que, na verdade, é um bom vinho, Adina põe os olhos nele de novo. Vai casar com Belcore. Ela gosta de se imaginar vivendo confortavelmente na cidade, mulher de um militar de carreira, mas a cabecinha vacila e aí Nemorino descobre nela uma furtiva lágrima. Ária merecidamente famosa, excelente musicalmente e um requinte romântico dos mais verdadeiros.

Uma lágrima nos olhos de Adina, alguma coisa mudou, Nemorino percebe e se comove com isso, é quase um orgasmo, uma esperança que se abre.

Ária bonita, ária fácil? Dirão alguns. Ária dificílima, digo eu. Exige voz, vibrato, emoção, agudos e pianíssimos em plena forma e uma interpretação que misture esse estado de quase gozo de Nemorino ao descobrir a tal furtiva lágrima a uma certa alegria, um certo sorriso do homem, que pensa: “ela chorou...chorou...e foi por mim”.

Em geral, o tom romântico da ária leva os cantores a darem a essa ária um tom tão romântico que acaba virando uma ária dramática, quando positivamente não é isso. Começo Elixir dos anos 40, tinha ouvido primeiro em disco, depois ao vivo, na interpretação musicalmente admirável de Tito Schipa, para meu gosto só comparável à de Pavarotti nos seu Elixir do Metropolitan. Mas tanto Schipa quanto o próprio Pavarotti esquecem muito do prazer de ter descoberto a lágrima nos olhos de Adina, eles cantam melancólicos, tristes, dramáticos sobre esse “milagre”. Se aconteceu o que ele tanto esperava, deve haver um pouco da satisfação do homem “ela chorou”, o prazer do homem que antevê uma possibilidade no mínimo um sorrisinho de satisfação.

Não falo de mudar nada, a música é perfeita, falo do sentimento do cantor/personagem: emoção sim, mas satisfação também. Isso é o que eu penso desde 1940. Vi no outro dia, na interpretação de Roberto Allagna sem a partitura da segunda versão feita pelo próprio Donizetti, conto com os meus Nemorinos para dar essa mistura de melancolia e satisfação com que o personagem deve cantar sua furtiva lacrima.

Compro o DVD e simplesmente descubro no making of da ópera em que o maestro e Allagna ressuscitaram Una furtiva lacrima que não é a que habitualmente se ouve. Simples! Dez anos depois da estréia, o próprio Donizetti sentiu que sua ária era dramática demais, que lhe faltava o tal sorrisinho de vitória e simplesmente reescreveu Una furtiva lacrima com pouca modificação, mas o suficiente para dar a seu intérprete o tom melancólico e apaixonado sim, mas misturado a uma sensação de prazer ao antever uma possibilidade nova: Adina chorou, quem sabe chorou por mim, quem sabe...

Fiquei muito satisfeito com essa descoberta na segunda versão de Donizetti, uma intuição qualquer sempre me pedia uma furtiva lagrima não só dramática e romântica. Eu queria aquele sorriso que o Allegna mostra e que foi que Donizetti se permitiu reescrevendo uma segunda versão de sua ária tão famosa.

Roberto Allegna canta Una furtiva lacrima encostado romanticamente á parede de uma casa, mas essa posição que levaria qualquer intérprete a um sentimento altamente romântico em princípio, não impede que se veja nele o prazer da descoberta da “aguinha” que saiu dos olhos de Adina. Um sorriso.

Para mim, a graça de Elixir está nesse jogo de mulher esperta, consciente do seu poder, mas conquistada pelo “bobão” que é o Nemorino bobão sim, mas o homem que ela, mulher completa na acepção da palavra, percebe que vai ser o homem perfeito para ela, por mais ingênuo que seja.

Aqui o elixir que Nemorino toma é apenas o incentivo que o leva à bebedeira (por excesso, já que ele está bebendo vinho) e da bebedeira a um certo atrevimento, a uma inesperada e aparente indiferença que deixam Adina insegura. Ela descobre que quer Nemorino e não admite que ele a trate com indiferença.

Ela quer e não quer, e quando percebe que pode perder, aí ela o quer mesmo, agora, com certeza.

Romantiquinho, mas sem a sensualidade desse jogo de homem-mulher fica um pouco sem graça. Por falar nisso, para os que gostam de Elixir, aconselho que não percam a versão com Pavarotti e Kathleen Battle, essa uma parceira a altura do grande divo, na voz, na malícia e na femininidade que o papel exige.

Para o meu Elixir, que meus Nemorinos e minhas Adinas me ajudem, naturalmente com Dulcamara e Belcore de qualidade, afinal os 4 são a ópera de Donizetti.