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GUIMARÃES ROSA, O LETRISTA BISSEXTO DA MPB

foto: divulgação


(A pequena-grande saga de Guimarães Rosa na MPB)


“As pessoas e as coisas têm de ser lembradas sempre, sob pena de mais um pouco de morte” G.R

Por Euclides Amaral


Que o escritor Guimarães Rosa é um dos poucos exemplos de singularidade extrema na literatura brasileira é ponto pacífico entre estudiosos da matéria como Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima:


“Escritor absolutamente singular em nossas letras. Não só em nossas terras contemporâneas, mas ainda em toda a história da nossa literatura. O nosso Guimarães Rosa tomou da matéria-plástica Brasil em suas mãos de bruxos tanta a paisagem como gente e linguagem, e com ela está modelando uma imagem de nossa cultura absolutamente inédita. Um autor absolutamente inqualificável, a não ser nas categorias do gênio, isto é, dos grandes isolados.”

 

A sua preocupação no rebuscamento da linguagem estava latente já em seu primeiro livro de contos, de 1946, “Sagarana”, escrito em apenas sete meses, deixando perplexo Graciliano Ramos. Quanto ao uso desta linguagem, que irá perpassar todos os seus livros, culminado na obra prima “Grande Sertão: Veredas”, de 1956, de acordo com a publicação The Guardian Staff em “The top 100 books of all time”


“Sua obra mais marcante foi Grande Sertão: Veredas, romance qualificado por Rosa como uma ‘autobiografia irracional’, marcada por elementos regionalistas, existencialistas e religiosos.”

 

Segundo o professor de português Carlos Barroca, em entrevista ao Jornal do Brasil:

“Na literatura de Guimarães Rosa, ao contrário da maioria de nossos escritores regionalistas, o sertão é visto e vivido de uma maneira subjetiva, profunda, e não apenas como uma paisagem a ser descrita, ou como uma série de costumes que parecem pitorescos. Sua visão resulta de um processo de integração total entre o autor e a temática. Dessa integração a linguagem é o reflexo principal.”

 

Já o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda vaticinou:

“Tenho medo de tentar comparações, não direi, por isso, que a obra de Guimarães Rosa é a maior da literatura brasileira de todos os tempos. Direi porém que nenhuma outra, de nenhum escritor, me deu até hoje, entre brasileiros, a mesma ideia de tratar-se de criação absolutamente genial.


João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, no interior de Minas Gerais e faleceu, de ataque cardíaco, no Rio de Janeiro em 19 de novembro de 1967, poucos dias depois de ter assumido a Cadeira nº 2, da Academia Brasileira de Letras, aliás, cumprindo uma profecia dele mesmo, que depois de tomar posse ele morreria, portanto, uma demora de quatro anos por parte do escritor em assumi-la, pois fora eleito em 6 de agosto de 1963. No ano de sua morte havia sido indicado ao “Prêmio Nobel de Literatura” por seu legado internacional comparado frequentemente a escritores como Proust e Joyce.


Desde o seu primeiro livro “Sagarana” até “Tutameia”, seu último publicado em vida, em 1967, o escritor presenciou e opinou nas diversas traduções de seus livros para várias línguas, mesmo porque era poliglota, dominando fluentemente oito línguas, lendo e escrevendo em cerca de 20 outras. Porém, não chegou a ouvir as suas letras de músicas gravadas por seus parceiros, algumas, inclusive, retiradas de seu livro “Ave, Palavra”, com textos selecionados de sua produção entre 1947 e 1967, ano da publicação do volume pouco depois de seu falecimento, reunindo crônicas, contos, diários, reportagens poéticas, poesias, anotações, notas de viagens e reflexões filosóficas, enfim, suas colaborações em jornais e revistas, que ele mesmo o definiu como uma “miscelânea”, caracterizando a variedade exposta na coletânea, uma publicação póstuma organizada por Paulo Rónai, que acrescentou vários textos inéditos aos já escolhidos pelo autor.


Outro de seu trabalho lançado postumamente seria “Magna” (poemas), ganhador do prêmio da Academia Brasileira de Letras em 1936 e publicado em 1997 tendo em vista que o escritor o considerava “livro menor”.


Seus livros publicados em vida foram “Sagarana” (1946), “Corpo de Baile” (1956), “Grande Sertão: Veredas (1956), “Primeiras Estórias” (1962) e “Tutameia” (1967).


O letrista bissexto Guimarães Rosa:


Talvez um dos primeiros parceiros de Guimarães Rosa tenha sido a cantora e compositora Dulce Nunes (Dulce Pinto Bressane), para quem entregou 15 letras, logo depois quatro foram musicadas, tendo 11 delas ainda supostamente inéditas.


Três composições foram gravadas pela parceira no LP “Samba do Escritor”, sendo as duas “O Aloprado” e “Adamúbies” poemas retirados do livro “Ave, Palavra”, e ainda uma terceira intitulada “Ou”.


O disco, de 12 polegadas, foi lançado em 1968 pelo Selo Forma, da Gravadora Philips, contando com as participações especiais de Nara Leão, Edu Lobo, Gracinha Leporace, Joyce e o conjunto vocal Momento Quatro, além de arranjos de Luiz Eça, Oscar Castro Neves e o lançamento de Egberto Gismonti, como arranjador e multi-instrumentista (violão e piano).

Convém lembrar que a compositora e cantora detinha a prática de musicar textos de escritores, não necessariamente letristas, como consta nas outras faixas, tais como parcerias com os escritores Millôr Fernandes, Antônio Callado e Jorge Amado, além de outras com os poetas Paulo Mendes Campos, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade, não necessariamente letristas, como Vinicius de Moraes, este sim letrista e um dos parceiros da cantora.


Dulce Nunes (o sobrenome Nunes viria de seu primeiro marido, o pianista Bené Nunes) também viria a gravar outra parceria com Guimarães Rosa, o poema “O moço e a moça”, também integrante do livro póstumo “Ave, Palavra”.


Outra incursão de Guimarães Rosa diretamente no trabalho fonográfico se deu no ano de 1973, quando o cantor e compositor Luiz Cláudio gravou a composição “O galo cantou na serra”, parceria de ambos, em LP lançado pela gravadora Odeon.


Porém, o escritor faleceu um ano antes do lançamento do LP de Dulce Nunes, nem chegando a ouvir a sua produção bissexta de suas letras para músicas gravadas pelos parceiros.


Se Guimarães Rosa não foi um letrista tão profícuo em produção de textos para serem musicados, pelo menos inspirou tantos outros compositores, vejamos alguns casos:


Paulo César Pinheiro, aos 16 anos, compôs a letra de “Sagarana”, em parceria com o violonista João de Aquino, em homenagem a Guimarães Rosa, lançada em 1969 no “IV Festival Internacional da Canção”. O letrista voltaria ao universo roseano em “Matita-Perê”, parceria com Tom Jobim lançada em 1973.


A troca é corroborada em vários outros momentos da MPB, por exemplo, a relevância de Guimarães Rosa é acentuada na composição “A terceira margem do rio”, de Caetano Veloso e Milton Nascimento, na qual a dupla exaltou a importância do conto “A terceira margem do rio”, do livro “Primeiras Estórias”, de 1962, Editora José Olympio.


Outra destaque sobre o registro da influência do escritor ficou por conta da obra discográfica do compositor mineiro Amarildo Silva, que em 2004 lançou o CD “Virgem Sertão Roseano”, com letras dos poetas Tanussi Cardoso (‘Canção pra Diadorim’, ‘Cruz do sertão’ e a faixa-título ‘Virgem Sertão Roseano’), Márcio Borges (“Arvoredo”) e Chico Pereira (“Meu recado”).


Em outros casos, não necessariamente um projeto sobre letristas, mas sim sobre artistas da MPB, que ali passaram dando depoimento sobre a carreira e a obra, além de cantarem, o projeto “MPB na ABL” (Música Popular Brasileira na Academia Brasileira de Letras) idealizado e apresentado no Teatro R. Magalhães Jr., pelo musicólogo Ricardo Cravo Albin no ano de 2013 brindou o público com o espetáculo inusitado: “Bethânia e as palavras”, no qual a cantora (e também letrista bissexta) em récita única cantou e declamou textos de Guimarães Rosa, Ferreira Gullar, Catulo da Paixão Cearense, Fausto Fawcett, Olegário Mariano, Craveirinha, Manuel Bandeira, José Carlos Capinan, Ascenso Ferreira, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Ronaldo Bastos, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos (os dois últimos são heterônimos de Fernando Pessoa), Eugênio de Andrade e dela própria, além de poemas de seu ex-professor de literatura, na adolescência, Nestor de Oliveira, também professor de Caetano Veloso.

O compositor mineiro Amarildo Silva voltaria ao universo roseano em 2018 com o CD “Mariana”, com letras do poeta fluminense Wander Lourenço.


E para o desfecho deste texto, o autor presta a sua singela homenagem ao “Mago das Palavras” em uma letra intitulada “Veredero”, musicada pelo violonista Beto Rocha:


“Veredero”

(Melodia: Beto Rocha / Letra: Euclides Amaral)


Sou veredero, sou buriti,

sou Velho Chico,

daqui não saio, aqui eu fico.

Sou Riobaldo, Diadorim...

Ensimesmado dentro de mim.


Eu sou a água que leva-e-traz,

sou a favela que se refaz,

o meu deserto é meu Sertão,

no couro seco do meu gibão.


O medo não tenho não!

Trago fuzil de Papo-Amarelo

e na cintura o meu facão!


Sou Rosa e travessia...

minha madrinha é a Estrela-Guia,

sou o pio da cotovia.

Trago o faro do Lobo-Guará...

a esquiva do Gato-Palheiro...

seja noite, seja dia.


Sou estradeiro, sou boiadeiro!

Sou esquivo, sou veredero!


BIBLIOGRAFIA CRÍTICA:

AMARAL, Euclides. A Letra & a Poesia na Música Popular Brasileira: Semelhanças & Diferenças. Rio de Janeiro: EAS Editora, 2019.

AMARAL, Euclides. Alguns Aspectos da MPB. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2008. 2ª ed. Esteio Editora, 2010. 3ª ed. EAS Editora, 2014.