Há quem associe lembranças antigas a brincadeiras do recreio no colégio, a aromas de perfumes, da massinha do Jardim de Infância ou do do preparo de alimentos na cozinha, das viagens de férias. Minhas recordações são pouco sensoriais, quase sempre ligadas à literatura. Minha mãe lendo para mim as histórias em quadrinho no Globo. Meu pai me falando sobre a importância de ler Pavese. Os livros da Condessa de Ségur, de Laura Ingalls Wilder, Monteiro Lobato, a coleção de bolso com as obras de Shakespeare, que ganhei aos 12 anos, as tardes das férias dedicadas à leitura e releitura de novelas policiais e de exemplares do Mistério Magazine.
Alguns gêneros literários exploram a existência de segredos como elemento indispensável às tramas. A literatura, principalmente a policial, parece ignorar que sob a superfície da vida social existem intimidades preservadas até nos tempos de superexposição da atualidade. Ou apenas reflete a sensação de conhecimento a respeito das complexidades diversas que grupos sociais apresentam.
Uma enchente arrasa uma cidadezinha na Zona da Mata pernambucana. Ao deixar a casa inundada, uma menina de 8 anos, Rivânia, faz sua trouxinha com livros. A avó recomendou que carregasse o que tinha de mais precioso. Rivânia pegou os livros, talvez sem entender o que seria valioso para a sobrevivência. Roupas, remédios, sapatos são essenciais. Mas para a criança, nos livros está o sonho.
A malandragem tem nuances e traz benefícios à humanidade. Não, a afirmação não é um sofisma, mas uma síntese bastante frágil do tema de A astúcia cria o mundo – Trickster: trapaça, mito e arte (Civilização Brasileira, RS 94,90), de Lewis Hyde. O subtítulo é autoexplicativo para quem tem noção do que seja a figura do trickster, um personagem irreverente e desafiador da moral e dos bons costumes, presente na literatura, na lenda e na vida real. Ele está nos deuses Loki (nórdico) e Hermes (grego, protetor dos viajantes, dos médicos e dos ladrões), em Exu e também no Rei Macaco da China. E em artistas, entre eles Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Allen Ginsberg e John Cage.
Com o país sob efeito de um vendaval de denúncias contra a classe política e o empresariado, a leitura do noticiário é suficiente para qualquer um lastimar a situação a que o Brasil chegou. Ou a que é revelada, gradativamente, por envolvidos em falcatruas que roubam da Nação suas riquezas, do povo seus direitos básicos a uma vida decente. Entre os direitos arrancados de nossa população estão a educação, o acesso ao conhecimento científico, a promoção à produção cultural. Fora o conforto que a tecnologia ofereceria a tantos, haveria a fruição da felicidade pela apreciação da existência através da arte.
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